Título: Junta diz que Marcela não era anencéfala
Autor: Iwasso, Simone; Leite, Fabiane
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2008, Vida, p. A19

É a 1.ª vez que um grupo de médicos analisa caso que é debatido no STF

Simone Iwasso e Fabiane Leite

Uma junta médica concluiu que a menina Marcela de Jesus, que sobreviveu por 1 ano e 8 meses no interior de São Paulo, não tinha anencefalia, mas uma outra malformação rara, a merocrania. Foi a primeira vez que um grupo de médicos se reuniu com os exames em mãos para analisar e esclarecer o diagnóstico.

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O caso da criança tem sido utilizado por grupos religiosos como argumento no debate no Supremo Tribunal Federal, que deverá decidir até o fim do ano se a interrupção da gravidez deve ser permitida em casos de anencefalia. Eles alegam que uma criança com o problema pode sobreviver.

¿Marcela tinha merocrania¿, afirma Thomaz Gollop, especialista em medicina fetal e professor da USP que levará os resultados da avaliação hoje ao tribunal. ¿Acabei de fazer uma junta médica com um especialista em anatomia e neurologia pediátrica com os exames em mãos. Ela tinha um defeito menos grave na formação do crânio e o resquício de cérebro presente, ao contrário dos anencéfalos que não têm nada, é coberto com uma membrana chamada cerebrovasculosa.¿

Gollop afirma que há apenas dez casos descritos de merocrania na literatura médica. E que se trata de um diagnóstico que também caracteriza a morte cerebral - ainda que, por causa da presença da membrana, o feto possa ter sobrevida vegetativa. Pela raridade do caso, e porque para os médicos o prognóstico para essas doenças é a morte do paciente, Gollop reconhece que chegou a dizer, antes de analisar profundamente o caso, que Marcela era anencéfala (mais informações nesta página). O especialista deve se manifestar hoje no STF.

Também participaram da junta o neuropediatra José Luiz Gherpelli, do Hospital Albert Einstein e do Hospital das Clínicas da USP, e o neurocirurgião Guilherme Carvalhal Ribas, também do Einstein. ¿Já tentei explicar na mídia há bastante tempo que não se tratava de anencefalia¿, afirma ele. ¿Na Europa, há mais de 30 anos, isso é ponto pacífico, você nem encontra esses fetos para estudar porque as mulheres abortam antes¿, acrescenta. Os três chegaram juntos ao diagnóstico de merocrania.

Individualmente especialistas vinham alertando desde novembro sobre o erro no diagnóstico de Marcela, o que foi reiterado nesta semana por Everton Pettersen, da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, e por Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica, que também irão ao STF.

¿O diagnóstico de anencefalia foi um engodo¿, afirma Ricardo Barini, coordenador do Programa de Medicina Fetal da Unicamp, o primeiro a alertar que a informação estava errada, em entrevista ao Estado. Barini disse que chegou a conversar com especialistas que apareciam na imprensa reafirmando a anencefalia. ¿Eles afirmavam que não tinham dito o que a imprensa reproduzia ou que se manifestaram sem ter informação sobre o caso. As pessoas foram confundidas por informações e por não pensarem sobre o assunto. Além disso, os médicos da criança nunca permitiram que uma junta médica analisasse o caso. E depois que ela morreu, nem sequer foi feita uma necropsia. Deveriam ter permitido, se era para comprovar o que diziam.¿

O ginecologista Jorge Andalafat Neto diz que chegou a propor que a criança fosse examinada no Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, onde haveria mais médicos e recursos. ¿Propus à médica que levasse a menina para lá. Mas ela não se interessou. A família não permitiu¿, conta. A reportagem não conseguiu localizar ontem a médica da criança, Márcia Beani Barcellos, que, segundo a Santa Casa (seu local de trabalho), está em férias. Especialista em medicina fetal do Hospital Santa Catarina, João Bortoletti Filho destaca que o diagnóstico de anencefalia é fácil se o médico for bem formado, experiente e utilizar bons equipamentos de ultra-som.No primeiro trimestre da gravidez é possível constatar indícios da malformação.

COMO É O DIAGNÓSTICO

Rotina: O diagnóstico de anencefalia faz parte da rotina de exames de pré-natal no Brasil. A malformação acontece geralmente entre a terceira e a quarta semana de gestação

Exame: Por meio do ultra-som já se visualiza a imagem do achatamento da cabeça do feto, causada pela ausência dos hemisférios cerebrais. Há um fechamento do tubo neural, que faz com que o cérebro não se desenvolva

Conferência: Em geral, faz-se mais do que um ultra-som para se ter a certeza do diagnóstico

Ressonância: Alguns médicos solicitam ainda a ressonância magnética, mas segundo neonatologistas ela é desnecessária quando o profissional tem boa formação