Título: Cana-de-açúcar, entre o velho e o novo
Autor: S. Jank, Marcos; Neves, Elio
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2008, Espaço Aberto, p. A2

Nos seus 500 anos de história, a indústria brasileira da cana-de-açúcar nunca esteve sob tantos holofotes. Nas últimas três décadas a cana deixou de ser meramente uma planta alimentícia para se tornar uma importante alternativa energética limpa e renovável, seja pela experiência bem-sucedida do etanol - que reduz a dependência do petróleo e as emissões de gases de efeito estufa -, seja pelas novas fronteiras da bioeletricidade (feita com o bagaço e a palha de cana), dos bioplásticos e das biorrefinarias. Ocorre que o Brasil soube sair na frente nesta corrida mundial pela busca de alternativas energéticas. Hoje o nosso programa é considerado referência mundial por dezenas de países, começando por EUA e União Européia.

Uma das áreas mais sensíveis deste processo é a sua sustentabilidade econômica, social e ambiental. Há anos, imensos e crescentes esforços dos setores público e privado vêm sendo implementados com o objetivo de atingir o difícil equilíbrio entre eficiência econômica, eqüidade social e responsabilidade ambiental. Muitas vezes, avanços num pilar da sustentabilidade provocam graves conseqüências em outro. Por exemplo, a necessidade de eliminar a queima da cana nos municípios canavieiros, feita para viabilizar a colheita manual, permitirá o aproveitamento da biomassa dessa mesma cana para gerar bioeletricidade, mas trará uma pesada conta de redução de empregos no setor. Estima-se que até 2014 cerca de 180 mil cortadores de cana irão perder seu emprego no Estado de São Paulo, porém a mecanização e a expansão do setor sucroalcooleiro podem criar 75 mil empregos nas fases agrícola e industrial. Tais números mostram a necessidade urgente de estabelecer programas de requalificação para cortadores de cana, abrindo caminho para que possam trabalhar nas novas funções que serão criadas no setor ou se qualificar para atuar em outros setores da economia. Ao mesmo tempo, é fundamental manter um esforço concentrado e contínuo na melhoria das condições de trabalho e qualidade de vida dos cortadores em áreas como contratos de trabalho, remuneração, saúde e segurança dos trabalhadores, transporte, alojamentos e atendimento a migrantes contratados em outras regiões do País.

Em 2006, a União da Indústria Canavieira do Estado de São Paulo (Unica) e a Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp) assinaram um inédito protocolo de intenções com o objetivo de aperfeiçoar as condições de trabalho e recomendar a adoção das melhores práticas. O protocolo abrange desde a eliminação gradual da terceirização no corte manual da cana-de-açúcar até melhorias no transporte de trabalhadores rurais, atendimento a migrantes e aumento de transparência na aferição e no pagamento do trabalho por produção. Vários grupos de trabalho foram criados e estudos estão sendo desenvolvidos, examinando desde a necessidade de adequação dos equipamentos de proteção individual vendidos no mercado, muitos deles inapropriados para o corte de cana, até uma recomendação expressa de contratação direta dos trabalhadores no corte manual da cana, eliminando totalmente a utilização de empresas prestadoras de serviços (terceiros).

Nesse contexto, o presidente Lula reuniu os principais representantes dos empresários e dos trabalhadores no Palácio do Planalto e instalou a Mesa de Diálogo para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, sob a coordenação do ministro Luiz Dulci.

Dois modelos estão sendo estudados. O primeiro é a velha proposta de um contrato coletivo nacional, que resultaria em padrões mínimos nacionais construídos pela negociação de um ¿mínimo denominador comum¿ dentro de um setor que se caracteriza por imensa heterogeneidade: são 400 indústrias, 70 mil fornecedores de cana, quase 1 milhão de trabalhadores diretos e canaviais que se espalham por 7,8 milhões de hectares em 20 Estados brasileiros. Em relação à negociação de contrato coletivo nacional de trabalho, o professor José Pastore afirma que, do ponto de vista técnico, é impossível afirmar que esta modalidade é melhor ou pior que a negociação direta regional ou empresarial, já que ambas têm suas vantagens e desvantagens. Do ponto de vista prático, porém, assiste-se no mundo inteiro a um avanço acelerado em direção a negociações mais descentralizadas.

Um segundo modelo, no nosso entendimento muito mais exeqüível e inovador, seria avançar com base na experiência paulista e negociar nacionalmente um ¿protocolo de adesão voluntária¿ que reconheceria as melhores práticas trabalhistas do setor, acima do que prevê a legislação brasileira, validadas por um sistema de auditorias independentes nas empresas. Tal protocolo teria o formato de um ¿certificado de conformidade¿ para as empresas que adotam as melhores práticas laborais, incluindo medidas de requalificação e realocação de trabalhadores para operarem com máquinas agrícolas e industriais, num processo de gradual evolução dos padrões acordados. Este sistema se inspira na idéia simples e moderna de que as empresas mais avançadas na área trabalhista poderiam servir de exemplo para a melhoria das demais - e o próprio mercado fatalmente reconhecerá o valor do protocolo e forçará mudanças graduais e efetivas de cultura e práticas laborais no setor.

Nada impede que a uniformização gradual das melhores práticas laborais deste protocolo de livre adesão seja futuramente objeto de um contrato coletivo nacional, que seria então legitimado num ambiente muito mais homogêneo de práticas trabalhistas amplamente reconhecidas pelo mercado, inclusive por meio dos inevitáveis mecanismos de ¿certificação internacional¿ da sustentabilidade dos biocombustíveis, que estão sendo discutidos no Brasil e no mundo.

Marcos S. Jank é presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica) Elio Neves é presidente da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp)