Título: O Judiciário desce do Olimpo
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/08/2008, Espaço Aberto, p. A2

O Judiciário brasileiro vive dias de glórias. Desce do Olimpo para habitar o mundo dos mortais. Até parece que pediu licença às divindades para passar um tempinho conversando ao pé do ouvido com os terráqueos, Joões, Marias e Josés que perambulam pelas ruas, engrossam as filas de ambulatórios e acorrem aos corredores das repartições públicas. E a conversa, podem ter certeza, é recheada de boas notícias. Crianças menores de 5 anos, de Blumenau (SC) e de Santo André (SP), terão direito a creche e pré-escola. Essa decisão, que se poderá estender a todo o território nacional, partiu do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e do Superior Tribunal de Justiça, em resposta a ações interpostas pelo Ministério Público Estadual. Aqui, ali e lá em cima, na Corte Suprema, as decisões de juízes começam a se banhar nas águas que jorram das fontes populares. O Judiciário brasileiro, até que enfim, dá sinais de que uma das máximas da romana Lei das 12 Tábuas (451 a.C.) ainda inspira o espírito público dos juízes: salus populi suprema lex (a salvação do povo é a suprema lei).

A referência ao escopo que impregnou o Direito Romano não significa que o nosso Judiciário deva sempre contemplar o passado. Ao contrário. Hoje, uma leitura daquele arrazoado deixa transparecer aberrações como morte à "criança monstruosa"; morte ao devedor, que deve ser cortado em pedaços na hipótese da existência de vários credores; pena capital para autores de injúrias e ultrajes públicos difamatórios; ou mesmo punição a mulheres que "arranhem o rosto e soltem gritos imoderados". O que se pretende dizer é que, na longa história das leis, muitas caducam e algumas vingam. E uma das tarefas mais dignificantes aos corpos que administram a justiça é descobrir qual estatuto legal de alguma época da humanidade ou de qualquer país reúne condições para ser aplicado. Pois bem, o Judiciário brasileiro atravessa um ciclo auspicioso, por incorporar um papel político - no sentido aristotélico, que é o de servir ao bem comum - tão reclamado pela sociedade. Basta lembrar a agenda de impacto sob a égide da Suprema Corte, envolvendo questões como a interrupção de gestação em caso de anencéfalos, a demarcação de terras indígenas, as cotas raciais em universidades, o casamento homossexual, a lei seca e a Lei de Imprensa.

O Supremo Tribunal Federal (STF) torna-se protagonista do debate público que abriga grandes questões nacionais, assumindo papel de destaque entre os Poderes, porque sua palavra tem o condão de se transformar em regra. É inegável que, ao afinar a sintonia com as temáticas de impacto, a alta Corte passa a ser a instituição de maior força para a modelagem da vida nacional. A polêmica aberta por conta do ativismo judicial do Supremo é até compreensível, mas não deve ser motivo para obstruir a missão "política" a que nos últimos tempos se tem dedicado. A missão é preencher as lacunas abertas pela Constituição de 88, que, em atendimento aos conjuntos corporativos da sociedade, deu cobertura às demandas, passando a exigir uma teia infraconstitucional. Esta, infelizmente, não foi costurada por completo. Nesse caso, o vácuo legislativo está sendo ocupado pela interpretação dada pelo STF. Ademais, a mais alta Corte de Justiça passou a dar vazão aos instrumentos que lhe foram conferidos pela Constituição federal, a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Se a inapetência do Poder Legislativo "beirava a anorexia", conforme lembra o ministro Carlos Ayres Britto, o Supremo também se limitava a constatar o fato. Mas as situações começaram a bater na Corte com tanta intensidade que os magistrados, no vácuo legislativo, decidiram agir. Ministros direcionam suas antenas para captar o ruído social. Britto e Joaquim Barbosa são firmes defensores de posicionamento mais ativo do Supremo para solucionar questões sociais, na esteira de uma tendência que se observa nos EUA e na Europa. O próprio presidente, Gilmar Mendes, se posiciona a favor de um STF como "verdadeiro legislador positivo", quando prega acréscimos às leis para que estas se ajustem à letra constitucional. Fez essa defesa por ocasião da decisão sobre o uso científico de células-tronco. Noutras ocasiões, "a interpretação segundo a Constituição" dada por ministros até muda o sentido de normas infraconstitucionais. Nos últimos tempos, questões de natureza política receberam do STF interpretações que causaram fortes críticas do Parlamento, dentre elas, a infidelidade partidária e o nepotismo.

A diretriz que parece inspirar o ativismo judicial dos altos magistrados é a da aproximação entre povo e Justiça. Essa meta é uma promessa até hoje não cumprida pela democracia, conforme nos lembra o filósofo Norberto Bobbio. O ciclo de descrença que a instituição política atravessa favorece, por seu lado, a intervenção das Cortes na esfera legislativa. A proibição de nepotismo na administração pública é exemplo de decisão que caiu muito bem aos olhos da sociedade. É evidente que a ação política das Cortes oferece riscos. Ao ingressar no espaço cotidiano, com decisões que afetam a vida das pessoas, os juízes passam a ser também objeto de questionamento de grupos insatisfeitos com as sentenças. A proibição indiscriminada do uso de algemas, por exemplo, gerou movimentos de revolta por parte de juízes de primeira instância, promotores e delegados. Ou seja, quando um magistrado começa a respirar, bem perto, o clima social, não se pode esquivar de ouvir aplausos e apupos.

Mas esse é um risco que vale a pena ser enfrentado. O País não pode andar ao léu. A sociedade precisa de régua e espaço. Ademais, o Congresso se eximiu da tarefa de regulamentar por inteiro a Constituição. Que os magistrados decidam - e bem - no caminho na justa sentença, agindo como o Senhor, que costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando as montanhas.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político