Título: O Banco Mundial e as hidrelétricas
Autor: Goldemberg, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/09/2008, Espaço Aberto, p. A2

O Banco Mundial publicou recentemente um interessante relatório sobre o Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil, que foi preparado como contribuição ao debate sobre os rumos que a produção de eletricidade vai tomar no Brasil.

Foi a produção de energia em usinas hidrelétricas, a partir do fim do século 19, que deu início à eletrificação do mundo moderno. Em condições favoráveis, é uma energia limpa e renovável, que transforma a força mecânica da água dos rios em eletricidade. Uma vez construída, uma usina hidrelétrica pode funcionar sem maiores problemas durante 40 a 50 anos, sem consumir combustível e operada por apenas algumas dezenas de técnicos. Assim foi introduzida na Europa e nos países industrializados, onde praticamente todos os aproveitamentos hidrelétricos possíveis foram feitos rapidamente. Só a partir de meados do século passado é que a geração de eletricidade em usinas térmicas, queimando carvão, derivados de petróleo e gás - além de usinas nucleares -, se tornou importante. Nos países em desenvolvimento, sobretudo na América Latina e na África, existe ainda um imenso potencial de aproveitamentos hidrelétricos a serem feitos.

Como explicar, portanto, as resistências que surgiram à construção de usinas hidrelétricas em vários países do mundo e, em especial, no Brasil?

A origem do problema está na Índia e na China, que têm grande densidade populacional e não são particularmente dotadas de recursos hidrelétricos. O que sucede é que a construção de usinas exige, em geral, a formação de lagos artificiais, que inundam grandes áreas e provocam outros impactos ambientais e sociais que forçam à realocação de populações indígenas e ribeirinhas e de atividades agrícolas. Em alguns casos, de fato, ela não foi bem conduzida, o que deu origem a toda espécie de reivindicações, algumas legítimas, às quais se somam, às vezes, outras questões não relacionadas com as hidrelétricas.

Uma das conseqüências dessas reivindicações, no Brasil, é que desde meados da década de 1980 as usinas que têm sido construídas têm reservatórios pequenos ou até nenhum reservatório, o que origina falta de eletricidade em períodos de pouca chuva. Parte dos problemas que tivemos em 2001 e até quase levaram a um racionamento se deve a isso.

Há cerca de dez anos, a resistência à construção de usinas atingiu tal vulto em alguns países que foi sugerido que o Banco Mundial deixasse de financiar empreendimentos hidrelétricos. Uma decisão dessas teria graves conseqüências, uma vez que usinas hidrelétricas exigem longo tempo para sua concretização (de cinco a dez anos), o que torna indispensável a aplicação de recursos financeiros a juros baixos e longo prazo para pagamento, que só o Banco Mundial pode fazer. Tratava-se, evidentemente, de uma proposta que poderia prejudicar milhões de habitantes de cidades que ficariam na escuridão sem a eletricidade proveniente de tais usinas. Por essa razão, na época foi criada uma Comissão Internacional de Barragens, que fez recomendações de aperfeiçoamento do processo de licenciamento e construção de hidrelétricas, sem impedir seu financiamento e construção. Muitas delas são relevantes para o Brasil e merecem ser revisitadas.

O grande potencial hidrelétrico remanescente do nosso país está na Amazônia, porque os principais aproveitamentos da Região Centro-Sul já foram feitos. Essa expansão, no entretanto, está provocando resistência de populações ribeirinhas e grupos indígenas diretamente atingidos e de algumas organizações não-governamentais (ONGs) que ainda não compreenderam que as outras opções para produzir energia, como usinas térmicas e nucleares, seriam piores do ponto de vista ambiental.

Essa resistência faz aumentar muito o tempo necessário para a concessão das licenças ambientais, o que eleva o custo das obras e até torna incerta a implementação de alguns projetos. Só para dar uma idéia dos problemas, os custos diretos do licenciamento ambiental (sociais, ambientais e incertezas regulatórias) representam, em média, cerca de 15% do custo total da obra - além dos custos indiretos.

O resultado é que se criam freqüentemente conflitos entre o Ministério de Minas e Energia, que deseja fazer as obras, e o Ministério do Meio Ambiente, que as licencia, uma vez que grandes obras (não só hidrelétricas, como estradas, portos e outras de infra-estrutura) sempre geram impactos.

É realmente urgente a solução desses problemas, pela seguinte razão: quando o governo decide ampliar a produção de eletricidade, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) realiza um leilão em que o vencedor é o grupo empresarial que oferece o menor preço para a eletricidade a ser vendida quando a usina começar a funcionar. Esse procedimento aparentemente beneficia a população com tarifas mais baixas, mas tem a conseqüência perversa de beneficiar também a opção por usinas a carvão ou gás, que levam menor tempo para construir, mas são muito mais poluentes. Com isso a responsabilidade e a pressão das ONGs, do Ministério Público e dos empreendedores sobre as autoridades ambientais se tornam imensas, porque estas ficam com a missão de corrigir escolhas impróprias que decorrem de leilões em que a única consideração é o preço final da energia.

Esta é uma situação parecida com os procedimentos que os governos utilizam para compras em geral, desde lápis até computadores: o critério é o menor preço, o que freqüentemente leva à compra do pior.

O recente relatório do Banco Mundial analisou em detalhes todas essas questões e fez um conjunto de recomendações muito úteis que - se adotadas - resolveriam muitos dos problemas existentes.

José Goldemberg, professor da USP, foi secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo