Título: Início de diálogo na Bolívia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/09/2008, Notas e Informações, p. A3

Após uma jornada de violentos confrontos entre oposicionistas e partidários de Evo Morales - que resultaram em pelo menos 8 mortos e mais de 50 feridos -, o presidente da Bolívia acolheu um pedido do governador do Departamento (Estado) de Tarija e convocou uma reunião dos líderes regionais da "meia-lua", para discutir uma saída para a crise política, "sem condições nem imposições". Pouco antes, ele havia reiterado que está disposto a "compatibilizar" o projeto da nova Constituição com os estatutos de autonomia aprovados em referendo por quatro Departamentos.

A reunião, marcada para a noite de ontem, poderá romper o impasse institucional que mergulha a Bolívia na desordem institucional e na violência. Após a aprovação do novo texto constitucional - em condições irregulares, num quartel e sem a presença dos parlamentares de oposição, impedidos de entrar no prédio -, o governo central e os governadores que reivindicam a autonomia e se recusam a aceitar o socialismo bolivariano preconizado por Morales praticamente romperam contato, dispostos a não ceder um milímetro em suas posições. Há duas semanas, depois que Evo Morales anunciou a convocação de referendo para aprovar a nova Constituição, grupos de militantes autonomistas passaram a invadir e ocupar escritórios do governo central, aduanas e instalações petrolíferas, além de fechar os postos de fronteira com o Brasil. Seu objetivo era vencer o governo, paralisando o país.

Credite-se a Evo Morales não ter acionado as forças policiais e militares para conter as manifestações - o que só poderia ser feito com o uso da força.

As ameaças de emprego da violência vieram do caudilho venezuelano Hugo Chávez, o mentor político de Morales. Ele anunciou que intervirá militarmente na Bolívia, se Morales for derrubado. Atribui-se também à sua influência o fato de o presidente boliviano ter expulsado do país o embaixador dos Estados Unidos, sob a acusação de ter tido contatos com governadores oposicionistas. E, para não ficar atrás, no dia seguinte expulsou o embaixador americano em Caracas. Na quinta-feira, Chávez esperou pacientemente o fim da transmissão do concurso de Miss Venezuela para ir à televisão, já passada a meia-noite, denunciar um complô de três militares sem comando de tropas para derrubá-lo, com o patrocínio dos Estados Unidos. Pela contagem do jornal El Nacional, a denúncia de magnicídio feita por Chávez foi a 230ª, desde que assumiu o governo.

Não bastasse, o caudilho ameaçou interromper o abastecimento de petróleo aos Estados Unidos. "Basta, ianques de merda!", disse ele com seu linguajar característico, para em seguida jogar o seu trunfo: a colaboração militar entre a Rússia e a Venezuela mudou as coisas. "A presença dos aviões na Venezuela é um aviso", disse, referindo-se a dois bombardeiros desarmados que visitam o país. "A Rússia está conosco. Somos aliados estratégicos. É uma mensagem ao império. A Venezuela já não é aquele país pobre e solitário." Editorial do El Nacional definiu o comportamento do ferrabrás: "Quem lhe porá a camisa-de-força?"

Mas há males que vêm para bem. Os exageros de Chávez levaram os militares bolivianos a sair do mutismo em que se encontravam desde o início da crise. O comandante das Forças Armadas, general Luis Trigo, advertiu o presidente Hugo Chávez e a comunidade internacional de que os militares bolivianos "rechaçarão enfaticamente as intromissões externas de qualquer tipo, venham de onde vierem".

Foi o necessário para que o presidente Evo Morales dispensasse os bons ofícios de mediadores propostos pela União Européia e pelo Grupo de Amigos da Bolívia, formado pelo Brasil, Argentina e Colômbia, e resolvesse, ele próprio, iniciar conversações com os governadores oposicionistas. Certamente terá contribuído para a disposição ao diálogo a reiteração, pelos líderes dos movimentos cívicos de oposição, de que seu objetivo é a autonomia dos Departamentos, não a deposição de Evo Morales.

O encontro da noite de ontem no Palácio Quemado - até a hora em que escrevíamos este editorial apenas o governador de Tarija, Mario Cossio, havia confirmado presença - na melhor das hipóteses servirá para estabelecer as bases do diálogo. Depois disso, é ver como o presidente Evo Morales e os governadores de oposição conseguirão conciliar posições tão antagônicas.