Título: Sorte e virtude diante da crise
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/09/2008, Economia, p. B2

A crise financeira internacional, que se aprofunda, submeterá o governo Lula a um teste decisivo. Será possível determinar se o presidente pode ter alguma pretensão a estadista ou se não é mais do que um líder populista particularmente manhoso e sortudo.

Antes de mais nada é preciso insistir no perigo de traçar paralelos entre a crise atual e a Grande Depressão de 1929-1933, tanto na perspectiva mundial quanto no que se refere ao Brasil. Os contrastes institucionais entre o mundo de hoje e o de quase 80 anos atrás são monumentais. No final dos anos 20, o mundo havia adotado o padrão ouro, a intermediação financeira era muito menos complexa do que é hoje e defeitos regulatórios estimulavam a concentração de risco de forma diferente. O Brasil, além de adotar o padrão ouro, dedicava-se a administrar os estoques de café, sua quase única exportação, para manter preços artificialmente altos. As economias candidatas a algo similar às atuais ¿emergentes¿ tinham peso desprezível globalmente.

Mais relevante, embora com as habituais cautelas quanto às distorções geradas pela visão retrospectiva (hindsight), é considerar em que medida teimosias baseadas em comportamento inercial contribuíram para agravar a crise. Essa protelação de medidas corretivas foi extremamente séria nos EUA, com conseqüências graves para o mundo. Só quase quatro anos depois da crise em Wall Street, o governo Roosevelt tomou as medidas decisivas para afastá-la, abandonando o padrão ouro e recuperando a saúde de intermediários financeiros. A ¿grande depressão¿ no Brasil dos anos 30 foi menos grave que a dos anos 80, pois a teimosia de Washington Luís enfrentou restrições mais cedo, dadas as modestas reservas cambiais do País. Há outros precedentes de subestimação do impacto de uma crise mundial sobre o Brasil: desde a famosa ilha de tranqüilidade geiselista até a catastrófica fuite en avant de 1979-1980, tudo culminando na crise externa com a pior recessão da história e a inflação descontrolada. A crise cambial de 1998-1999 talvez possa ser candidata a contra-exemplo, pois a sua gravidade ajudou a concentrar as mentes para que o governo controlasse a sua ambigüidade desenvolvimentista e adotasse atitude fiscal responsável.

A avaliação do desempenho do presidente Lula tem dado margem a oportunas evocações de análises baseadas em Maquiavel, nas quais fortuna e virtù são ingredientes essenciais. Virtù andou sendo definida como mistura de audácia, oportunismo, cálculo e instinto, mas isso é pouco. É preciso acrescentar a essencial devoção ao bem comum. E devoção ao bem comum inclui, em posição proeminente, capacidade de formulação de políticas substantivas.

De fato, a crise é um teste importante para Lula, porque indica mudança do favorável cenário internacional. Sendo sua fortuna significativamente afetada, ser-lhe-ia exigida mais virtù. O problema é que seu retrospecto com relação à virtù é meio patético. O sucesso, até agora considerável, de nossa versão de príncipe renascentista resultou de muita sorte combinada com escassa virtude. As políticas de seu governo que deram certo foram herdadas do governo Fernando Henrique Cardoso. Talvez o ponto central de sua administração - demonstração de virtù, e não de ¿conformidade¿, como querem alguns - seja a manutenção da política econômica. Mas é virtù herdada.

Quando o governo tentou ter iniciativa quanto a políticas concretas nos últimos anos, o espetáculo foi, quase sempre, desolador. Exemplos? As ações do eixo Crivella-Unger no desmantelamento do pouco que resta da área de formulação estratégica do governo. As trapalhadas aéreas, que vão desde a crise regulatória ao diagnóstico tardio de que privatizar nem sempre envolve traição à classe operária. Mesmo em relação à política econômica, quando há espaço o que se ouve é um coro de críticas beirando a irresponsabilidade e, muitas vezes, obtusas. As comemorações dos 200 anos (sic) do Ministério da Fazenda foram usadas como caixa de ressonância para incentivar políticas de ¿pau na máquina¿, em oposição à prudência do Banco Central. Alguns dos loquazes ex-ministros estão também entre economistas que o presidente ouve habitualmente e parecem ter como plataforma serruchar las patas, ¿tirar o tapete¿, dos ¿ortodoxos do Banco Central¿.

A deficiência de virtù se reflete também no plano político, com o personalismo populista presidencial sendo estimulado pelos altos índices de popularidade num quadro de desmoralização do PT como partido que se propunha a servir de modelo para exorcizar o fisiologismo. No processo, Lula perdeu os dois presidenciáveis do partido que podiam ser levados a sério: José Dirceu e Antonio Palocci. Dada a baixa qualidade do plantel remanescente, Lula namorou o terceiro mandato e agora parece entretido em empinar a problemática candidatura de Dilma Rousseff.

Não há banho de palanque que torne a candidatura Rousseff aceitável. Pode até ser eleita, na esteira da popularidade de Lula, mas a sua consistência política é claramente questionável. O presidente deve descer dos palanques em busca de virtù, moderar as frases de efeito, recompor a sua base de apoio e se aproximar de segmentos do PSDB para reconstruir um partido de centro-esquerda que possa retomar a agenda de consolidação partidária do velho PT com um programa modernizado. Mas o PSDB que interessa é o que consegue achar pouco razoável o lado Mantega da atual política econômica.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-RJ