Título: Mbeki sai de cena
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2008, Notas e Informações, p. A3
A África do Sul pós-apartheid só teve dois presidentes em 14 anos - o legendário Nelson Mandela, de 1994 a 1999, e desde então, até o último fim de semana, no seu segundo mandato, o sucessor que ele escolheu - o economista formado na Inglaterra Thabo Mbeki. A estabilidade política do país não é propriamente freqüente no continente africano, mas a sua democracia tem uma estranha peculiaridade. A Constituição estabelece que o presidente da República, eleito pelo Parlamento bicameral entre os seus membros, pode ser cassado se receber um voto de desconfiança da direção do seu partido. E foi o que fez o Congresso Nacional Africano (CNA), o partido de Mbeki e o único que conta de fato na África do Sul, resolvendo em favor de seu presidente, Jacob Zuma - que já foi vice de Mbeki e deverá assumir o governo depois das eleições nacionais marcadas para abril de 2009 -, o longo e traumatizante conflito entre eles.
Mbeki renunciou ao cargo antes de ser destituído, e o seu lugar será ocupado durante esses próximos sete meses pelo vice-presidente - não do país, mas do partido, o ex-sindicalista Kgalema Motlanthe. Embora ligado a Zuma, ele se manteve ostensivamente neutro na disputa entre os antigos aliados. Esta teve dois momentos decisivos. O primeiro, em dezembro, quando Zuma se impôs a Mbeki, outrora seu padrinho político, no comando do CNA. O segundo, na semana passada, quando a Justiça arquivou uma ação por improbidade contra Zuma. Em 2005, acusado de receber propina de um fabricante de armas francês, foi destituído da vice-presidência antes de ser julgado. (Um assessor dele foi condenado a 15 anos de prisão.) Agora, além de arquivar o processo, o tribunal denunciou ¿interferências políticas¿ na condução do caso - o pretexto que a facção anti-Mbeki no partido esperava para derrubá-lo.
Para o grupo de Zuma, o presidente passou a persegui-lo em represália às críticas que fazia à sua política econômica de inspiração neoliberal. Sob Mbeki, a África do Sul cresceu à razão de 5% ao ano, em média, mas o fosso social do país se ampliou: a população em situação de miséria absoluta dobrou e o desemprego alcança 26%, segundo os dados oficiais. Beneficiaram-se do crescimento os investidores estrangeiros, a minoria branca e a nova elite negra, também minoritária, cujos vínculos com o CNA a credenciavam a receber privilégios do governo. Explica-se portanto o desassossego dos setores mais bem postos da sociedade sul-africana com a saída de Mbeki, embora a mudança tenha se dado sem turbulências, com o que os espera no quase certo governo Zuma. Tanto que nos últimos meses o agora presidente Motlanthe já vinha empreendendo uma espécie de campanha para acalmar os receios do ¿populismo¿ do inimigo de Mbeki.
Fazer inimigos, aliás, parecia ser a sua especialidade, à medida que a sua presidência se transformava numa autocracia. Ele rompeu com o arcebispo emérito Desmond Tutu quando este o acusou de favorecer minorias e de exigir submissão dos correligionários do CNA. A intolerância foi outra de suas características, agravando as divisões raciais que Mandela combatera, sob a bandeira da reconciliação. A obsessão de Mbeki com questões de raça é indissociável do que ele fez de pior, talvez, para a África do Sul: a recusa a dar à população livre acesso a drogas retrovirais sob a proclamada alegação de que o HIV não causa a aids; dizer o contrário era fomentar o preconceito contra os negros. (Algo como 5,5 milhões de sul-africanos são soropositivos. É a população mais infectada do mundo. Em 2007, 336 mil pessoas morreram de aids no país.) Pelos absurdos que tem dito sobre a prevenção da síndrome, Zuma não parece mais esclarecido do que o rival.
A política externa de Mbeki foi também execrável. Seu governo foi o principal sustentáculo da mais duradoura ditadura africana, a de Robert Mugabe, no vizinho Zimbábue. No fim, Mbeki acabou mediando um acordo de partilha do poder entre ele e o líder oposicionista Morgan Tsvangirai. Além disso, em parceria com a China, a África do Sul ajudou a vetar o debate sobre violações de direitos humanos em Mianmar. Em suma, Nelson Mandela não merecia ter um sucessor como Mbeki. Nem o seu país correr o risco de ter outro autocrata no seu lugar.