Título: Repensar a compensação ambiental
Autor: Nalini, José Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/09/2008, Espaço Aberto, p. A2

Embora o ufanismo apregoe vitórias seguidas em relação ao meio ambiente, a realidade sugere mais prudência de todos os interessados em preservar a vida no planeta. O desmatamento continua, as queimadas prosseguem, a produção de resíduos sólidos é crescente e a poluição continuará a matar impunemente.

Como em inúmeros outros setores, o Brasil registra evidente descompasso entre o ordenamento e sua efetivação. A Constituição federal, que logo completará 20 anos, avançou muito ao contemplar a natureza. Erigiu o meio ambiente - nada obstante a inadequação terminológica - em direito difuso, bem da vida essencial às presentes e futuras gerações. O constituinte teve coragem ao explicitar na Carta Política o primeiro direito intergeracional no sistema pátrio. Os viventes são responsáveis pelo uso racional dos recursos naturais, a fim de que possam deles fruir os nascituros. Aqueles que ainda não nasceram são igualmente titulares desse direito fundamental.

Também não faltam normas infraconstitucionais. Prolífico o legislador brasileiro - não apenas o Parlamento, mas, sobretudo, o governo e seus órgãos - a fornecer regramento hábil a tornar concreta a tutela fundante. Por isso, não se fale em falta de leis como causa do desamparo ecológico tão evidente em todas as esferas.

Falta, isso sim, é educação ambiental. Há déficit de consciência ecológica propícia a assimilar a realidade jurídica. A miopia de tantos privilegiados continua a encarar a preocupação ambiental como antagônica ao progresso. Uma visão anacrônica de desenvolvimento, calcada no consumismo desenfreado, nem sequer cogita de sustentabilidade. Característica própria a uma sociedade considerada pelos espíritos mais sensíveis como egoísta, hedonista e, portanto, desinteressada de pensar no porvir, pois inteiramente mergulhada na defesa de seus próprios e imediatos interesses.

A lei perdeu o seu caráter mítico. É um parâmetro válido, mas insuficiente a alterar a conduta dos seres humanos. Fenômeno que no País é mais acentuado, quando se constata a trivialidade com que se alega existirem ¿leis que pegam e leis que não pegam¿.

Impõe-se à comunidade jurídica implementar a vontade legal de maneira a fazer germinar o consentimento comunitário. Se isso não se fizer, de nada adiantará a elaboração da mais avançada normatividade protecionista.

Um ponto em que é urgente avançar diz respeito às compensações ambientais. Os empreendedores do agronegócio são refratários à reserva florestal legal. Invocam a inexistência de mata nativa e ignoram a crônica da devastação a que o Brasil foi submetido desde o seu descobrimento. Querem eliminar a exigência legal de preservação de 20% das áreas para que nesse porcentual sobreviva a natureza original. Têm a seu serviço o talento das mais sedutoras inteligências e a cultura desenvolvimentista que tudo traduz em cifrões.

É uma nítida queda-de-braço entre a lei e sua observância espontânea. A persistir a atual tendência, não serão surpresa a próxima revogação desse dispositivo do Código Florestal e a supressão dos derradeiros fragmentos de mata nativa nos Estados mais povoados. Exatamente aqueles em que a qualidade de vida reclama investimentos maiores na restauração da cobertura vegetal.

A alternativa é optar pelo mal menor. Ilusório acreditar que o cultivo de cana-de-açúcar vá ceder espaço ao reflorestamento com espécies da mata atlântica. A produtividade maior continua a ser meta e a conquista do mercado primeiro-mundista para o etanol brasileiro está nos planos do governo.

Por que não flexibilizar a compensação ambiental e investir em novas propostas? Nem sempre será possível o reflorestamento na mesma bacia hidrográfica. Mas existem parques estaduais abandonados ou já contaminados por invasões heterogêneas. As matas ciliares poderiam merecer um projeto específico e as empresas infratoras se encarregariam de recuperá-las. A retomada das áreas dos mananciais é tarefa de que o poder público não se desincumbirá sem a parceria com a iniciativa privada.

Pense-se, por exemplo, num quase utópico e ambicioso projeto de recuperação das Represas Guarapiranga e Billings. Elas representam a sobrevivência da megalópole e se as invasões fossem disciplinadas, a par da ressurreição das águas, ampliar-se-iam as opções de lazer do paulistano.

Por que não entregar às empresas hoje infratoras e poluidoras, como alternativa de compensação ambiental, a urbanização dessas áreas degradadas? Não é impossível realocar as moradias, treinar os moradores para o cultivo arbóreo, a jardinagem, o lazer e outros serviços próprios às destinações do turismo aquático.

Para isso haveria a necessidade de ruptura da rigidez na interpretação da lei, que só conduz a impasses nefastos para a natureza. A participação da administração pública, do Ministério Público, da Justiça e das próprias empresas hoje no pólo passivo das ações ambientais conformaria o ideal da estrutura cooperatória do processo. Tão prometida, mas tão distante da realidade.

Para o direito ambiental interessa mais é a preservação da natureza para que netos, bisnetos e descendentes possam respirar do que a observância inflexível dos preceitos normativos. Essa a tábua de salvação do meio ambiente.

Como já observava Jean Cruet em sua instigante obra A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis, sempre se viu a sociedade alterar a lei. Nunca se viu foi a lei modificar a sociedade.

José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras