Título: Crise dos EUA atinge liberalismo financeiro
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/09/2008, Economia & Negócios, p. B1
Pressão pela regulação provocará mudança na atuação dos mercados
Fernando Dantas
Com a crise bancária nos Estados Unidos, que levou à montagem de um pacote de salvamento com US$ 700 bilhões em dinheiro público, a era do liberalismo financeiro parece ter chegado ao fim. ¿O mundo financeiro dos últimos 25 a 30 anos morreu¿, diz Otaviano Canuto, vice-presidente de Países do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Como ele, muitos especialistas prevêem um futuro de instituições financeiras bem menos alavancadas (relação entre ativos, ou créditos a receber, e capital próprio) e com critérios rígidos de concessão de empréstimos. Além disso, os bancos, daqui em diante, devem ser obrigados a ter uma base de captação de depósitos junto ao público (com o fim dos bancos de investimento independentes), a colocar no balanço todas as transações nas quais estejam envolvidos direta ou indiretamente, e sofrerão restrições e exigências de maior transparência para operar com produtos derivativos complexos.
Já há também uma movimentação, cujo sucesso é menos provável, para limitar e controlar a forma como operadores do mercado financeiro são remunerados, especialmente os bônus estratosféricos que auferem quando acertam tacadas especulativas de curto prazo.
Aloísio Araújo, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas no Rio (FGV-Rio), resume o novo clima em relação à regulação bancária. ¿A idéia de que é muito difícil regular o sistema financeiro, e de que ele tem capacidade de se autocorrigir - uma visão meio romântica, derivada de Hayek (Friederich Hayek, economista austríaco) - se revelou equivocada, porque este processo de correção pode ter um custo alto demais para a economia real.¿
Embora muitos se apressem em comemorar uma derrocada geral dos princípios liberais, foi na sua fronteira financeira que a ideologia do livre mercado sofreu o seu segundo grande tropeço, depois de já ter sido responsabilizada pela crise dos países asiáticos em 1997. Entre os muitos ditames do ¿Consenso de Washington¿ na década de 90, que incluíam responsabilidade fiscal, privatização, abertura comercial e combate à inflação, o mais polêmico sempre foi aquele que preconizava a progressiva liberalização das transações financeiras.
A idéia de que os países emergentes deveriam reduzir as restrições à entrada e à saída de fluxos de capitais foi a causa - segundo sumidades como o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz - da crise financeira que se disseminou por uma penca de países asiáticos após a desvalorização forçada do baht tailandês em julho de 1997.
Agora, passados 11 anos desde a turbulência asiática, e depois de episódios semelhantes atingirem Rússia, Brasil e Argentina, a crise voltou-se contra a própria Wall Street, o coração do sistema financeiro global. E, de novo, o diagnóstico de muitos especialistas, como o próprio Stiglitz, aponta a liberalização financeira desenfreada como a grande culpada.
Em recente artigo no Financial Times, Willem Buiter, ex-economista-chefe do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd) e ex-membro externo do Comitê de Política Monetária do Banco da Inglaterra (banco central), chegou a colocar em discussão a estatização do sistema bancário dos países desenvolvidos - uma bandeira que só a franja mais radical da esquerda em países latino-americanos ainda costuma defender.
Buiter não apoiou a estatização, mas também não atacou. Na verdade, ele notou que a crise recente reforçou um antigo argumento de que não haveria nenhum motivo real para a existência da propriedade privada de instituições bancárias que captam depósitos, ¿porque elas não podem existir de forma segura sem esquemas de garantia de depósitos e de emprestador de última instância, que são em última instância subscritos pelo contribuinte¿.
Ninguém está, de fato, contemplando a estatização bancária, mas parece certo que uma regulamentação muito mais estrita do setor virá na esteira da atual crise. Hoje, o alvo é todo o modus operandi das instituições financeiras que, com pouca ou nenhuma fiscalização, liberam créditos com critérios e garantias fragilíssimos, criam produtos mirabolantes com base naqueles empréstimos, empacotam, transferem para fora dos seus balanços e redistribuem aqueles mesmos produtos, e ainda montam com eles mercados paralelos e opacos onde os participantes especulam de forma desenfreada e com altíssima alavancagem.
Com o surgimento e a disseminação dos chamados produtos financeiros derivativos, entusiastas da inovação - como Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, banco central americano - acreditaram que o mundo financeiro ficaria mais seguro. A lógica por trás dessa crença é a de que os derivativos permitem decompor, recombinar e redistribuir os riscos inerentes a toda transação financeira e mesmo econômica. Assim, um banco hipotecário pode não ficar exposto a uma eventualidade que deprima a economia da sua região, se transferir parte do seu risco para outras instituições e investidores.
A atual crise financeira americana, porém, mostrou que os derivativos freqüentemente não foram usados para redistribuir, de forma racional, os riscos financeiros pelo mundo. Na verdade, uma de suas principais finalidades parece ter sido escamotear os riscos, permitindo que se vendesse gato por lebre para investidores incautos, além de burlar os limites regulatórios de alavancagem e as restrições à especulação.
No fim, a complexidade dessas operações atingiu níveis tão surreais que mesmo instituições sofisticadas, como a seguradora AIG e o banco de investimentos Lehman Brothers, que recrutavam sem dificuldades cérebros de ponta munidos de modelos matemáticos, enfiaram os pés pelas mãos.