Título: Geórgia é teste para EUA e Rússia
Autor: Kissinger, Henry; Shultz, George
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/10/2008, Internacional, p. A12

A crise que envolveu a Geórgia evoca um tema familiar na história. Em 1914, um problema essencialmente local foi visto por tantas nações em termos de medos e frustrações estabelecidos, que se tornou global no seu alcance e levou à Primeira Guerra.

Não há risco de uma guerra generalizada hoje. Mas há o risco de um conflito emergindo a partir de paixões ancestrais no Cáucaso ser tratado como metáfora para um conflito mais amplo, ameaçando o imperativo da construção de uma nova ordem mundial no mundo da globalização, da proliferação nuclear, dos conflitos étnicos e da revolução tecnológica.

A crise georgiana é citada como prova de que a Rússia de Vladimir Putin está comprometida com uma estratégia de desenredar a ordem internacional pós-soviética na Europa.

Uma estratégia de isolar a Rússia tem sido defendida como resposta. Os Estados Unidos e a Rússia permaneceram sem contato de alto nível desde o início de agosto até uma reunião recente entre a secretária americana de Estado, Condoleezza Rice, e o chanceler russo, Serguei Lavrov. Os contatos não-governamentais foram reduzidos.

Essa deriva para o confronto precisa terminar. Isolar a Rússia não é uma política sustentável de longo alcance. Não é factível nem tampouco desejável isolar um país que se estende por um oitavo da superfície terrestre, adjacente à Europa, à Ásia e ao Oriente Médio, e possuidor de um estoque de armas nucleares comparável ao dos EUA.

Como a maioria das guerras, a crise georgiana originou-se numa série de erros de cálculo. A liderança da Geórgia subestimou o alcance da ação militar e a magnitude da resposta da Rússia. A Rússia deve ter ficado surpresa com a reação do Ocidente à escala de sua intervenção. Ela não deve ter considerado o impacto em outros países com minorias étnicas geograficamente distintas de seu reconhecimento da Ossétia do Sul e da Abkázia como Estados independentes ou o precedente que essa ação poderia estabelecer, mesmo para algumas regiões da Rússia.

Não se deve permitir que esses erros de cálculo dominem a política futura. Os EUA têm um interesse importante na integridade territorial de uma Geórgia independente, mas não numa diplomacia de confronto com a Rússia por causa de seus vizinhos. A Rússia precisa compreender que o uso ou ameaça de uso de forças militares evoca lembranças que reforçam os próprios obstáculos às relações cooperativas que são a base de suas queixas. Os EUA precisam decidir se vão lidar com a Rússia como um possível parceiro estratégico ou como uma ameaça a ser combatida pelos princípios extraídos da Guerra Fria. Evidentemente, se a Rússia seguir as políticas que seus detratores lhe atribuem, os EUA precisam resistir e o farão com todas as medidas apropriadas.

Ainda não chegamos a esse ponto. Os líderes da Rússia seguramente deploram a dissolução do império russo e soviético. Mas se eles são dotados de algum realismo - e em nossa experiência, sabemos que o têm - sabem que é impossível à Rússia buscar reverter sua história por meios militares.

A história da Rússia exibe uma oscilação entre as limitações da ordem européia e as tentações de expansão no vácuo estratégico ao longo de suas fronteiras na Ásia e no Oriente Médio; esses vácuos não existem mais. No oeste, a Otan é uma presença estratégica formidável. No leste, existe uma Ásia em ascensão para a qual se está deslocando o centro de gravidade dos assuntos mundiais. No sul, a Rússia enfrenta um Islã particularmente radicalizado ao longo de uma extensa fronteira. No interior da Rússia, as perspectivas demográficas são de um declínio da população total e um aumento relativo da porcentagem de seus muçulmanos, que são parcialmente descontentes.

A Rússia ainda não foi capaz de enfrentar adequadamente seu déficit em infra-estrutura e saúde. Com um PIB menor que um sexto do PIB dos EUA (em termos de paridade de poder de compra) e um orçamento de Defesa de menos de um terço do orçamento da União Européia e uma fração do orçamento dos EUA, a Rússia não está bem posicionada para conduzir uma luta de superpotência contra os EUA ou seus aliados. Os líderes russos, a despeito de sua retórica, sabem disso.

O que eles têm buscado, ainda que canhestramente, é antes a aceitação como iguais em um novo sistema internacional em vez de perdedores numa Guerra Fria para a qual termos podiam ser ditados. Seus métodos foram ocasionalmente violentos. Compreender a psicologia de seu entorno internacional nunca foi uma especialidade russa - em parte pela diferença histórica na evolução entre a Rússia e seus vizinhos, em especial no Ocidente.

Mas a justiça exige algum reconhecimento de que o Ocidente nem sempre foi sensível à maneira com que o mundo se parece quando visto de Moscou. Tome-se o caso da evolução da Otan. Nos seus primeiros 50 anos, a Otan legitimou-se como uma aliança defensiva. Ao empreender uma guerra contra a Iugoslávia, em 1999, a Otan proclamou o direito de alcançar suas aspirações morais com uma ação militar ofensiva. A guerra para dar fim às violações sérvias dos direitos humanos em Kosovo, terminada em parte com mediação russa, criou um Kosovo autônomo sob a soberania nominal sérvia, mas sob a supervisão de fato da União Européia. No início deste ano, esse status foi mudado por uma decisão unilateral de um grupo de nações européias e dos EUA para declarar a independência de Kosovo com endosso da ONU e a objeção vigorosa da Rússia.

A decisão de Kosovo ocorreu quase simultaneamente à publicação do plano para deslocar mísseis antibalísticos para a Polônia e a República Checa e uma proposta de convidar a Ucrânia e a Geórgia para integrar a Otan. Essa narrativa explica algumas motivações da Rússia; ela não busca justificar cada resposta nem a retórica de confronto ocasionalmente empregada. Mas sugere a importância de olhar a crise atual com alguma perspectiva histórica e psicológica.

As crises imediatas não nos deveriam desviar das responsabilidades de longo prazo. Em abril, os presidentes Bush e Putin encontraram-se em Sochi e esboçaram um programa de cooperação entre a Rússia e os EUA para enfrentar os requisitos de longo prazo da ordem mundial. Ele incluía temas como a não-proliferação de armamentos, o Irã, energia, métodos para abrandar o impacto da localização de mísseis antibalísticos na Europa Oriental e uma possível vinculação de alguns sistemas de defesa de mísseis antibalísticos americanos e russos. Os dois países possuem mais de 90% das armas nucleares do mundo. Sua cooperação é imperativa para barrar a proliferação. Mudança climática e energia também exigem uma atitude global cooperativa. Não devemos nos desviar dessas tarefas por causa de uma política de confronto evitável.

Finalmente, nossa capacidade de conduzir a política externa com respeito à Rússia requer esforços enérgicos para restaurar nossa força doméstica. Nossa casa financeira precisa ser colocada em ordem primeiro, e não apenas a crise imediata, mas a estrutura da onda de programas de habilitações que enfrentaremos. Somos excessivamente dependentes de importações de petróleo e, por conseqüência, estamos sujeitos à maior transferência de riqueza num tempo tão curto como o mundo jamais viu. Precisamos de uma legislação que proporcione um horizonte de longo prazo a esforços abrangentes e determinados para pôr fim a esse estado de coisas.

A diplomacia sem força é estéril. A força sem diplomacia é uma tentação para a presunção. Acreditamos que os interesses fundamentais dos EUA, da Europa e da Rússia estão mais alinhados hoje - ou podem ser levados a isso - mesmo na esteira da crise georgiana, do que em qualquer outro ponto da história recente. Não devemos desperdiçar essa oportunidade.

*Henry Kissinger e George Schultz escreveram este artigo para `Tribune Media Services¿