Título: Política voltou ao centro do debate
Autor: Rodrigues, Alexandre
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/10/2008, Nacional, p. A10
O eleitor carioca deu um recado claro nas urnas no primeiro turno das eleições e mergulhou numa aventura política imprevisível protagonizada por duas candidaturas contraditórias, que confrontam as biografias dos postulantes com as bases partidárias que os sustentam.
O ex-guerrilheiro Fernando Gabeira (PV), impulsionado pela coligação com o PSDB e a simpatia do DEM do prefeito Cesar Maia, enfrenta Eduardo Paes (PMDB), afilhado do governador Sérgio Cabral (PMDB), jovem político forjado no seio conservador do antigo PFL que agora reivindica a aliança de centro-esquerda que governa o País. A situação é inusitada, mas tem significado maior: baniu a mistura de política com religião e reacendeu o debate de idéias no Rio.
A avaliação é do cientista político Cesar Romero Jacob, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Estudioso de mapas eleitorais e da influência das religiões, ele diz que a rejeição a Marcelo Crivella (PRB), que liderou a disputa e terminou em terceiro lugar, é resultado do voto útil dos cariocas em Gabeira para, antes da decisão, excluir o ex-bispo da Igreja Universal. Ao Estado, Jacob diz que, depois de reabilitar a política, só agora o carioca examinará o dilema de escolher entre o passado e o presente dos finalistas. A julgar pelo empate técnico das primeiras pesquisas, é cedo para dizer o que prevalecerá.
O que levou a um segundo turno no Rio indefinido entre candidatos com biografias tão diferentes dos grupos políticos que os sustentam? Essa eleição apresenta um fato auspicioso, em comparação a 2004, que foi a cidade ter dito que não quer que se repita a mistura de religião com política. São escolhas de natureza diferente. Há uma certa perplexidade com o fato de as biografias dos candidatos não baterem com os apoios partidários, mas é altamente positivo que se tenha colocado a política novamente no centro da discussão. Em 2004, houve uma distorção. O Rio acabou escolhendo em função da confissão religiosa dos candidatos. Os evangélicos votaram no irmão (Crivella) e os católicos, em Cesar Maia (reeleito no primeiro turno), fazendo voto útil. Não foi à toa que Maia começou e terminou a campanha na escadaria da Igreja da Penha. Estava sinalizando: católicos, sou seu candidato.
Com candidatos que têm ¿sinais trocados¿, como o eleitor vai escolher?
Gabeira fez toda a sua trajetória ¿pela esquerda¿ e agora tem sustentação em partidos que no espectro político poderiam ser chamados de centro-direita. Por outro lado, Paes, que teve toda a sua trajetória ¿pela direita¿, vai ser adotado pela esquerda. Então o eleitor vai se colocar o seguinte dilema: escolher pela biografia ou pela base dos candidatos. É uma questão que se coloca sobretudo para os eleitores mais politizados, nos dois campos. Os eleitores de esquerda tendem a ir mais pela emoção. O conservador fica mais desconfortável.
O que vai prevalecer? A pessoa ou as forças partidárias?
Isso é uma incógnita, só os debates nas próximas semanas vão indicar. Não acho que haverá uma posição única. Gabeira tenderá mais a apelar para sua biografia, que não é convencional. Já Paes, que tem uma biografia menos glamourosa, vai apelar para as bases partidárias. Haverá eleitores indo pelos dois caminhos. Se for pela biografia, o conservador preferirá Paes e o de esquerda, Gabeira. Se for pelas bases partidárias, o oposto. Ainda não dá para dizer o que vai prevalecer. Na verdade, o eleitor está em busca do candidato com o qual se identifique.
Não será apenas uma solução matemática, onde quem obtiver mais apoios dos derrotados recebe os votos, como parece acontecer em São Paulo?
Uma coisa são os líderes partidários, outra é o eleitor. O eleitor, nos meus estudos, mostra coerência. A incoerência é dos líderes políticos. É evidente que o eleitor conservador não fica confortável de apoiar Gabeira. Todas as posições dele, como casamento gay e profissionalização de prostitutas, não são de uma agenda conservadora. Assim como o eleitor de esquerda vai se constranger de votar em Paes, que foi o candidato do Cesar Maia e do Marcello Alencar, atacou Lula.
O Rio tem um cenário político muito fragmentado. É uma situação nova?
Em 1982, a esquerda tirou Miro Teixeira do chaguismo e faz dele o seu candidato. Dez anos depois, isso se inverte com Cesar Maia, que é tomado pela direita do PDT e vence. Na eleição deste ano, há uma situação absolutamente nova porque isso acontece dos dois lados. As duas posições estão trocadas. Tanto Paes poderia ser considerado o Miro Teixeira da vez, como Gabeira, o Maia. As disputas eleitorais nos últimos anos têm se dado todas dentro da chamada família brizolista. No vácuo do enfraquecimento dos brizolistas é que surge a questão religiosa. O PSDB de estilo paulista não tem a menor expressão no Rio. O PT não conseguiu se beneficiar do crescimento das votações de Lula e aí entrou o candidato pentecostal. Nessa eleição, ressurgem o primado da política e suas paixões, que continuam prevalecendo no Rio.
Por que a estratégia de Crivella, traçada pelo marqueteiro Duda Mendonça, de construir um discurso laico com a Carta ao Povo Carioca, não deu certo?
Não funcionou porque o discurso não bate com a prática da Igreja Universal. Crivella reclama de intolerância, mas é vítima da intolerância praticada pela igreja da qual faz parte. Se a Universal é refratária ao ecumenismo e hostil às religiões afro-brasileiras, naturalmente ele acaba colhendo os frutos dessa atitude. Não adianta dizer que vai governar para todas as religiões. Essa é a contradição. Há um descolamento aí e o discurso fica falso, não colou. Os 19% dos votos de Crivella são compatíveis com o tamanho dos evangélicos no Rio.
O que fará a diferença para Gabeira e Paes agora?
O primeiro ponto é máquina e discurso, o que os dois têm. A segunda questão é a oposição entre idéias inovadoras e experiência. Gabeira terá mais idéias inovadoras, mas nunca administrou nada. Paes tem experiência, mas provavelmente só apresentará idéias convencionais. O terceiro ponto é que o eleitor terá de decidir se, depois de cinco eleições consecutivas, vai novamente dizer não ao governador. Tem sido freqüente o prefeito ser de oposição ao governador, que faz oposição ao presidente. Por isso vai pesar a discussão da necessidade da confluência com o Estado e a União.
Mas isso não é personalizar uma relação que deveria ser institucional?
Isso é verdade, mas na vida real é mesmo possível facilitar a vida dos aliados e atrapalhar a dos adversários.