Título: Reforma agrária às avessas divide comunismo
Autor: Trevisan, Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/10/2008, Internacional, p. A27

As mudanças no setor rural discutidas pelos líderes chineses desde quinta-feira abrem caminho para o ressurgimento de grandes proprietários de terra, justamente um dos principais alvos da Revolução Comunista liderada por Mao Tsé-tung em 1949.

Trinta anos depois de iniciada a reforma que colocou a China no centro do cenário econômico global, os líderes do país buscam caminhos para acelerar a integração de seus 730 milhões de camponeses à sociedade de consumo.

A possibilidade de os camponeses poderem negociar seus direitos de exploração da terra é o principal tema no encontro anual do Comitê Central do Partido Comunista, que termina hoje. Se aprovada, ela será a mais radical transformação no campo desde que as famílias ganharam sinal verde para cultivar lotes de terra de maneira individual, a partir de 1978.

A medida permite que uma única pessoa ou empresa adquira os direitos de exploração da terra de vários camponeses e concentre a produção agrícola em uma única unidade, o que permite a modernização e mecanização do campo.

A reforma enfrenta resistência de setores do Partido Comunista e apresenta imensos riscos, na medida em que corta o vínculo que evita um êxodo rural em massa para as cidades e garante a alimentação dos milhões de camponeses do país.

A vila de Xiaogang, na província de Anhui, é apontada pela imprensa oficial como uma experiência-piloto que indica o caminho que a reforma poderá percorrer. Entre as mudanças relatadas está a decisão de 10 famílias de arrendarem suas terras para uma empresa de criação de porcos de Xangai, enquanto outro grupo fez negócio com uma vinícola.

As mudanças são comparadas ao ¿risco político¿ que muitos camponeses correram antes do início do processo de reforma de 1978, ao realizarem contratos individuais para cultivo da terra, fora do sistema de produção coletiva.

Suas ações acabaram inspirando as mudanças que foram oficializadas em dezembro de 1978 e posteriormente estendidas ao restante do país.

O objetivo das reformas é acelerar o processo de urbanização, reduzir a diferença de renda entre a zona rural e urbana e modernizar a produção agrícola.

As reformas econômicas dos últimos 30 anos beneficiaram principalmente os moradores das cidades, em especial as da costa leste do país, como Pequim, Xangai e Cantão.

A vida no campo melhorou no início dos anos 80, quando as famílias foram autorizadas a cultivar lotes de terra de maneira individual e a vender o excedente de sua produção a preços de mercado. Mas enquanto as cidades continuaram a se transformar em uma velocidade estonteante, o campo estagnou e manteve a mesma estrutura de produção.

O resultado foi o aumento da disparidade de renda entre a zona rural e urbana. No ano passado, a renda média líquida per capita anual dos camponeses foi de US$ 590, enquanto os moradores das cidades receberam US$ 1.970.

Atualmente, os camponeses realizam contratos de 30 anos com as vilas rurais que detêm a propriedade coletiva da terra, o que lhes dá o direito de cultivá-la junto com suas famílias.

O sistema vincula de maneira perpétua o camponês à sua vila de origem, já que ele não pode transferir para terceiros o seu direito de exploração da terra. O modelo também leva à extrema fragmentação das propriedades agrícolas e a uma estrutura de produção que vai um pouco além da subsistência.

Os pedaços de terra que cada família cultiva são tão pequenos que a medida que impera na zona rural chinesa é o ¿mu¿, equivalente a 0,06666667 hectare. Em média, há 2,11 ¿mus¿ per capita na zona rural, o que dá a cada família menos de 1 hectare de cultivo.

Muitas das 700 mil vilas rurais da China viram um êxodo de homens adultos em direção às cidades em busca de empregos nos quais ganham muito mais do que na agricultura. O restante da família fica no campo, para garantir a manutenção do direito de exploração da terra.

O governo chinês estima que existam hoje pelo menos 150 milhões de migrantes rurais na China, que são camponeses que abandonaram temporariamente suas vilas e literalmente vagam pelo país em busca de emprego.

São eles que trabalham nas obras de construção civil e nas fábricas de produtos de baixo valor agregado. Para fugir do campo, se sujeitam a longas jornadas, baixos salários e condições precárias de moradia.

A reforma rural enfrenta resistência dentro do Partido Comunista por razões ideológicas e pelo temor do impacto que ela poderá ter sobre a estabilidade social do país.

A estrutura de propriedade da terra aliada ao sistema de registro de residência (hukou) evitou que os milhões de migrantes rurais se transformassem em moradores das grandes cidades. Depois trabalhar por períodos determinados na zona urbana, eles acabam voltando para suas vilas de origem.

O hukou discrimina os chineses entre cidadãos do campo e da cidade e dificulta que os camponeses se instalem nas zonas urbanas, ao restringir o acesso a serviços de saúde e educação e proibir a aquisição de imóveis.