Título: Apagões urbanos
Autor: Reis, Nestor Goulart
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2008, Espaço Aberto, p. A2

Estamos na fase dos apagões: da energia elétrica, dos aeroportos, do trânsito em São Paulo, da segurança pública, do gás, da educação e da saúde. Em matéria de infra-estrutura e serviços urbanos, estamos certamente no fim de uma época. Não de um governo ou de outro, mas de uma época. Os investimentos se concentraram no mercado financeiro. As cidades foram deixadas à própria sorte. Na melhor tradição brasileira, não foram feitos planos setoriais consistentes, nem planos de conjunto, para melhorar o desempenho das partes, num sistema integrado. A regra é a improvisação, que é a ante-sala do desastre, do apagão, das surpresas desagradáveis. Apagões não são fortuitos. São a conseqüência lógica da imprevidência, a comprovação pública da incapacidade de prever. Saber projetar é saber pensar e prever.

Exemplos do passado podem-nos ajudar a raciocinar, apoiar-nos na busca de soluções mais adequadas, de caminhos mais eficientes. Podem-nos ensinar a projetar, passo fundamental para a administração das áreas urbanas. Podem-nos indicar as conseqüências das omissões e as alternativas a serem evitadas. E nos mostram a importância do papel da imprensa e dos profissionais dispostos a promover melhorias na vida urbana.

No Brasil, durante todo o Império (1822-1889), como agora, os governos resistiam a investimentos nas áreas urbanas. Nossas vilas e cidades apresentavam quadros graves do ponto de vista de saúde, segurança, educação, infra-estrutura e urbanismo. Guardadas as proporções, era uma situação semelhante à de nossos dias.

Pedro da Silva Telles, em sua História da Engenharia no Brasil, relata-nos um incidente ocorrido no Rio de Janeiro entre 1888 e 1889 que mostra a diferença possível entre duas formas de reação aos problemas urbanos e seus efeitos políticos. Foi o chamado ¿episódio da água em seis dias¿, uma história exemplar, inclusive pelas pessoas envolvidas.

Naquele momento, vivia-se no Rio de Janeiro uma crise de abastecimento de água. Um verdadeiro apagão. Com a população aumentando rapidamente e o sistema de abastecimento obsoleto, os habitantes eram obrigados a viver no verão carioca, com seus 42 graus à sombra, sem água para as necessidades básicas, além da precariedade sanitária. Enquanto isso, a Corte e os mais ricos passavam o verão em Petrópolis.

As providências oficiais só ocorriam depois das crises estabelecidas e sempre de modo ineficiente e inapropriado, outra semelhança com os dias atuais. Naquela época, a água da então capital do País era captada num trecho da Serra do Mar e conduzida aos chafarizes do Rio de Janeiro em quantidade insuficiente. Uma estiagem mais forte criou um quadro de calamidade. A solução oferecida, em marcha muito lenta, era a construção de uma nova barragem para reforço do abastecimento. Já haviam sido comprados os canos, mas as obras da barragem e a instalação dos tais canos deveriam levar alguns semestres, talvez dois anos. Era uma divisão de responsabilidades, na qual aos governos cabia protelar e enrolar. Aos habitantes cabia calar e suportar.

O apagão transformou-se em crise política. Rui Barbosa, militando na oposição, havia assumido a direção do Diário de Notícias e resolveu fazer eco aos clamores da sociedade. A população organizava comícios à frente dos chafarizes sem água. O que começou como um gesto político se transformou em campanha pública e envolveu toda a cidade.

Para reagir aos ataques ao governo e fugir às responsabilidades da solução lentíssima, como um desafio, o ministro da Agricultura abriu um concurso de projetos, prometendo executar qualquer alternativa que fosse viável, em prazo menor que o dos órgãos oficiais. Propunha que indicassem o ¿nome do profissional capaz de realizar esse milagre¿ e afirmava: ¿Uma vez indicado o nome de quem aceite uma tal responsabilidade, dando as precisas garantias, o governo não cerceará despesas.¿ E ainda: ¿Resta àqueles que sustentam essa possibilidade o dever patriótico de virem ao encontro da administração.¿ Até parecia o conjunto de crises de nossos dias, como a dos aeroportos e a do trânsito em São Paulo.

O resultado do concurso de 1888-1889 mostrou a diferença entre capacidade de inovação e eficiência, de um lado, e imobilismo, desprezo pelo interesse público e arrogância, de outro.

Um mês antes de se encerrar o prazo estabelecido pelo ministro, foram apresentadas duas propostas para solução do problema, em 40 dias: uma da firma Buarque e Maia e outra do engenheiro Francisco Bicalho. Já era um abalo para o governo. O seguinte foi ainda maior. Uma semana antes do encerramento do prazo do edital, estimulado pelo entusiasmo de Rui Barbosa e do público, o então jovem professor Paulo de Frontin apresentou um projeto para levar água à cidade em prazo cerca de cem vezes menor do que o previsto pelo governo. Em lugar de 720 dias, apenas seis dias, ou 144 horas.

Rui Barbosa publicou a proposta no Diário de Notícias e exultou. Os agentes governamentais foram tomados de fúria. Por sugestão de dom Pedro II, foram obrigados a elaborar o contrato de execução das obras. Com malícia, criaram todas as dificuldades possíveis. Ajudado pelos engenheiros Carlos Sampaio e Júlio Paranaguá e por alunos da Politécnica, Paulo de Frontin levou água para o Rio de Janeiro em seis dias. Os trabalhos, cumpridos sob chuvas torrenciais, foram acompanhados por três jovens jornalistas que se tornariam célebres: Olavo Bilac, Coelho Neto e Raul Pompéia.

Poucos meses depois, com apoio político da população urbana, caiu o governo imperial.

Cada corrente política escolhe o urbanismo que lhe convém.

Nestor Goulart Reis, arquiteto e sociólogo, é professor-titular da FAU-USP