Título: O Senado cumprirá a lei
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2008, Notas & Informções, p. A3

Os observadores do cotidiano político nacional raramente têm motivos para transmitir à opinião pública uma imagem positiva dos protagonistas desse espetáculo em geral deplorável. Ainda mais quando o seu enredo gira em torno dos arranjos fabricados para promover os interesses rasteiros dos que entraram para o ofício exatamente para esse fim. Por isso mesmo, quando um político age em desacordo com os desalentadores costumes de tantos dos seus pares, o acontecimento merece registro à altura do seu simbolismo e do que contém de incomum. O político, no caso, é senador Garibaldi Alves (PMDB-RN).

Pelo pouco que dele se esperava quando assumiu a presidência da Casa no ano passado, em lugar do notório Renan Calheiros, que renunciou para fugir a um processo de cassação por quebra de decoro, o seu desempenho parece dar suporte à teoria de que a função faz o homem. Ele começou marcando pontos por suas reiteradas críticas à passividade do Legislativo em face da desenvoltura com que o Planalto pauta a agenda parlamentar com as suas medidas provisórias - deixando o Congresso em estado de ¿extrema-unção¿, chegou a dizer. Depois, tratou de se dissociar das manobras para burlar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra o nepotismo nos Três Poderes.

Quando, por exemplo, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) sugeriu a criação de cotas para a contratação de parentes por parlamentares, a sua resposta foi desmoralizar a proposta - ¿três primos, dois tios...¿, ridicularizou. Mas topou com a obstinada resistência dos colegas a fornecer à Mesa a relação da parentela empregada, que deveria ser demitida. E se viu diante de uma interpretação da Súmula Vinculante nº 13 do STF, preparada pelo advogado-geral do Senado, Alberto Cascais, que ia ao encontro dos interesses dos parlamentares empregadores e que a Comissão Diretora da Casa cometeu a temeridade de acatar, além de prorrogar por oito dias o prazo dado pela Corte para que as demissões se consumassem.

Advertido de que poderia ser enquadrado em crime de responsabilidade por não cumprir a determinação do STF, mandou o advogado submeter o parecer à Procuradoria-Geral da República. ¿Se houver um engano, vamos reparar¿, avisou. O procurador-geral Antonio Fernando de Souza não esperou por isso. Encaminhou ao STF uma reclamação em que demonstra cabalmente que o ato da Comissão ¿afronta¿ a Justiça. De um lado, porque o Supremo vedou a nomeação de parentes até o terceiro grau e o Senado a proibiu só até o segundo. De outro lado, porque o Senado permitiu que ficassem nos cargos os servidores contratados antes da posse dos senadores seus parentes ou caso estes já tivessem se aposentado.

¿Forte desde o início de nossa história política, o nepotismo é fruto da renitente e odiosa confusão entre as esferas pública e privada¿, observou Fernando de Souza. Diante da irrefutável contestação oferecida pelo procurador, a reação de Garibaldi foi imediata - e incisiva. Substituiu o advogado-geral da Casa pelo consultor legislativo Luiz Fernando Bandeira de Melo, sem a preocupação de dourar a pílula. ¿Ele não se mostrou à altura do desafio¿, justificou em português claro. O ¿enunciado¿ de Cascais, é bom lembrar, resultou de uma consulta do senador Epitácio Cafeteira (PTB-MA), cuja filha e uma cunhada haviam sido nomeadas em 1997, antes que ele assumisse o atual mandato. Não se sabe se o advogado tinha conhecimento de que elas foram contratadas pelo próprio Cafeteira no seu mandato anterior, iniciado em 1991. O certo é o que o esperto senador omitiu o detalhe.

Garibaldi criou ainda uma comissão para fazer o levantamento completo dos familiares dos senadores que devem ser demitidos. (Até então, haviam sido afastados 45 parentes de parlamentares e 25 aparentados de ocupantes de cargos de chefia ou direção na estrutura administrativa da Casa, o que a súmula do STF também exige.) ¿Em 72 horas, e isso é improrrogável, a comissão fará tudo¿, anunciou o senador. ¿Teremos toda a revisão dos casos já tratados e os novos que precisam ser acrescentados.¿ E arrematou com uma sentença singela que se ouve muito menos do que seria desejável da boca de autoridades brasileiras: ¿Faça-se justiça, cumpra-se a lei.¿