Título: Reforma tributária torta
Autor: Panzarini, Clóvis
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2008, Economia, p. B2

Os Estados, por comodidade arrecadatória, têm adotado massivamente o instituto da substituição tributária para a coleta do ICMS, descaracterizando a sua natureza de imposto do tipo ¿valor agregado¿ e transformando-o em ¿quase-monofásico¿. Tal política tem provocado pânico nos contribuintes, especialmente nos que cumprem com suas obrigações fiscais, em razão das desarrumações de mercado - provocadas pela ¿pasteurização¿ das margens de valor agregado dos diferentes canais de comercialização para efeito de lançamento do imposto -, do cipoal de normas dela decorrente e, ainda, pela diferenciação de tratamento tributário entre fornecedores locais e interestaduais.

A substituição tributária é o mecanismo pelo qual o ICMS incidente nas sucessivas saídas promovidas pelos atacadistas ou varejistas é retido na fonte pelo industrial ou importador (substitutos) no momento da venda da mercadoria para os comerciantes (substituídos). O industrial, ou importador, passa a ser ¿agente arrecadador¿ do Estado, pois, ao promover saída interna desses bens sujeitos ao regime, retém, além do ICMS relativo à sua operação, o imposto que deve gravar o valor agregado nos elos subseqüentes da cadeia de comercialização - comércio atacadista e/ou varejista - até o consumo final. A sua aplicação, por óbvio, só faz sentido nas saídas de bens de consumo final.

Essa prática supostamente traz comodidade ao Fisco, que, em vez de auditar milhares de comerciantes, controla apenas os ¿gargalos¿ da cadeia produtiva: as indústrias ou os importadores. O instituto é legítimo e facilita a arrecadação, cercando-a de segurança, uma vez que supostamente o imposto passa a ser exigido da pessoa com maior fôlego econômico e pode representar simplificação de procedimentos. Entretanto, além da previsão legal, a adoção desse instituto deve respeitar certos pressupostos, sob pena de comprometer a sua eficácia e fazer com que ele se volte não apenas contra os bons contribuintes, que se pretende preservar da ação dos sonegadores, mas também contra o seu criador, o Fisco. Dentre esses pressupostos, deve-se considerar a existência de ¿gargalos¿ na cadeia produtiva, para onde devem ser deslocadas a responsabilidade tributária, a confiabilidade dos contribuintes substitutos e, principalmente, a existência de homogeneidade de produtos e preços. Esse regime de cobrança do ICMS ¿na fonte¿ tinha indiscutível eficácia à época de sua criação, quando os preços eram tabelados pelo poder público, o que dispensava a necessidade de estimação dos mesmos na ponta do varejo e a sua aplicação era restrita a poucas mercadorias, como cigarros, combustíveis e automóveis. Na economia de mercado, porém, a sua eficácia fica comprometida em face da necessidade de profetizar, no momento da saída da indústria ou do desembaraço aduaneiro da mercadoria importada, o preço que será praticado no varejo, para efeito da retenção, pelo industrial ou importador, do ICMS que incidirá sobre o futuro valor da venda ao consumidor final.

A lei nacional do ICMS e as leis estaduais que o instituíram estabelecem, então, critérios para a estimativa da margem média de valor agregado pelos contribuintes substituídos, necessária ao cálculo de retenção do imposto. Esses critérios definem o peso do ICMS incidente sobre as mercadorias sujeitas ao regime e, quando mal aplicados, intencionalmente ou não, resultam em aumento de imposto, tornando letra morta o princípio da legalidade. A adoção de margem média de valor agregado pelo contribuinte substituído - ainda quando adequadamente estimada - induz, também, a distorções concorrenciais, pois aqueles que agregam valor acima da média naturalmente sofrem carga tributária inferior aos que agregam menos do que a média. Vendas promocionais também acabam sendo sobretaxadas.

Nem é o caso de discutir aqui a obrigatoriedade de complementação do imposto por aqueles que agregam mais ou de ressarcimento àqueles que agregam menos do que a média, uma vez que essa regra de complementação ou ressarcimento está sub judice no Supremo Tribunal Federal. Por fim, é de se registrar outro efeito colateral indesejável da substituição tributária: a anulação do benefício de ICMS das micro e pequenas empresas optantes do Supersimples, pois, como o imposto é cobrado integralmente na saída da indústria, as empresas substituídas, grandes ou pequenas, sofrem idêntica carga tributária.

*Clóvis Panzarini, economista, ex-coordenador tributário da Secretaria da Fazenda paulista, é sócio-diretor da CP Consultores Associados Ltda.

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