Título: A obra inacabada de 1988
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/10/2008, Notas & Informações, p. A3

Na festa organizada pelo Palácio do Planalto para comemorar os 20 anos da Constituição, quarta-feira, o presidente Lula fez um mea-culpa por ele e os demais deputados petistas terem votado contra o texto da nova Carta, insuficientemente avançado para os padrões do partido de então. ¿Naquela época¿, justificou-se o presidente, aludindo à intransigência que marcou o comportamento da bancada do PT, ¿eu não tinha dimensão da necessidade das costuras que você tem que fazer antes de colocar uma matéria delicada em votação.¿ De tanto costurar, porém, a Assembléia Constituinte, cujo trabalho Lula agora considera um ¿momento de ouro¿, produziu uma Lei Magna com uma torrente de enunciados para todos os gostos e expectativas - não poucas das quais o tempo se encarregou de tornar anacrônicas.

Quem sabe o desfecho não pudesse ser outro, dadas as circunstâncias históricas do País - ¿o grau de consciência e amadurecimento político da sociedade naquele instante¿, no dizer de Lula, e a fantasia amplamente compartilhada de que a ¿Constituição Cidadã¿ deveria ser a panacéia para todas as mazelas nacionais. Mas não foi preciso o transcurso de dois decênios para ficar claro que o Brasil de 1988, encarnado no Congresso, legou uma obra inacabada que não se sabe quando ou se, afinal, ficará pronta. As 62 emendas acrescentadas desde então à Carta atestam o imenso contraste entre a ambição dos constituintes e a precariedade dos resultados obtidos. Nem mesmo a celebração palaciana da data - embora obviamente não se prestasse a um mergulho nos problemas criados pela Constituição e naqueles que ela foi incapaz de prevenir - pôde passar ao largo dessa constatação.

O presidente do Senado, Garibaldi Alves, surpreendeu os 450 parlamentares, ex-constituintes e ministros presentes à solenidade, além do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com uma nova tirada contra o excesso de medidas provisórias (instituídas na Carta). Ele as equiparou aos decretos-leis do regime militar como instrumento de controle do processo legislativo pelo governo. Se o Congresso não os votasse no período previsto, eram considerados aprovados por decurso de prazo. De volta ao presente, Garibaldi considerou ¿inconcebível¿ que, em 68 das 120 sessões deliberativas da Casa, no ano passado, as votações foram obstruídas por medidas provisórias com prazo de deliberação vencido.

As suas críticas, por destoar do clima congratulatório em que se desenrolou a cerimônia, acabaram tendo mais destaque no noticiário do que a referência - esta sim, inequivocamente oportuna - aos muitos artigos da Constituição que ainda falta regulamentar, 20 anos depois de sua promulgação. ¿Se veio para ficar¿, argumentou o senador - valendo-se da expressão que os constituintes usavam com freqüência para proclamar por antecipação a longevidade da Lei Geral em que trabalhavam -, ¿já deveria estar aperfeiçoada e não está.¿ Trata-se, decerto, de uma avaliação mais sóbria do que a do presidente da República, para quem a Assembléia conseguiu aprovar em tempo recorde, ¿sem as brigas que já existiam em outros lugares do mundo¿ (?), uma Constituição que não perde para nenhuma outra. ¿Está para nascer uma melhor do que ela¿, entoou.

Se assim fosse, ele não precisaria reivindicar a paternidade da criação de uma comissão parlamentar para enfim se ocupar da regulamentação dos artigos que, para todos os efeitos práticos, permanecem no limbo. ¿Nunca um governo atendeu tão rapidamente um presidente do Congresso¿, gabou-se com a hipérbole de praxe. Na realidade, foi o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, quem no início do ano criou a comissão (presidida pelo deputado peemedebista Michel Temer e tendo como relator o petista João Paulo Cunha). A tentativa de apropriação da iniciativa pelo presidente irritou o companheiro. ¿O Lula viu que eu não estava ali para brincadeiras e no final disse que foi iniciativa da Câmara¿, comentou depois Chinaglia. Mas esse é problema deles. O problema do País é conseguir que o Parlamento leve a sério a necessidade de tornar efetivos os preceitos constitucionais que por ora ainda não passam de declarações de intenção - ou revogar aqueles que manifestamente não têm razão de ser.