Título: A reação do governo
Autor: Goldfajn,Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2008, Espaço Aberto, p. A2
Seria prudente se o governo deixasse cair no esquecimento. Mas não teve essa clareza. Fez questão de aprovar na Câmara o Fundo Soberano do Brasil (FSB), mecanismo criado para comprar excesso de dólares no mercado, no pior mês da pior crise financeira internacional das últimas décadas. Se antes a proposta do FSB, feita há poucos meses, indicava falta de visão do que vinha pela frente, sua aprovação gerou perplexidade. Enquanto o Banco Central (BC) vendia, em outubro, US$ 28 bilhões, entre derivativos e recursos das reservas, para fazer frente à escassez, a aprovação do FSB passava a mensagem de que, para atuar, agora só aguarda o excesso de liquidez e de crédito atravessar nossas fronteiras. A reação da sociedade tem sido a de ignorar o insensato e se concentrar nas medidas que têm contribuído para enfrentar a crise - como as diversas intervenções do BC e a redução do compulsório. Mas o perigo está presente. O clima de crise é propício a novas medidas para desejos antigos que pouco contribuem para combatê-la. Nesse sentido, seria bom responder quais deveriam ser os objetivos a pautar a reação do governo à crise. O que se deve evitar?
Vejo alguns objetivos imediatos neste momento de crise: 1) Evitar que a falta global de crédito implique ameaça à saúde de instituições financeiras locais; 2) redistribuir a liquidez que tende a fluir para o governo e ficar concentrada na mão de poucos; 3) evitar uma parada brusca de crédito doméstico às empresas e famílias; 4) suavizar movimentos excessivamente bruscos na taxa de câmbio que prejudiquem o funcionamento da economia; 5) suavizar, caso ocorra, uma parada brusca de fluxos de capital internacional para o Brasil nos próximos meses. Esses objetivos, se cumpridos, evitariam as piores conseqüências da crise internacional - falências, recessão, crise financeira -, mas não necessariamente a desaceleração de atividade que deve ocorrer no mundo e, como conseqüência, no Brasil.
As medidas adotadas pelo BC vão na direção dos objetivos citados acima e têm sido bem-sucedidas até o momento. A redução no compulsório, cujo nível inicial alto propiciou um espaço considerável, injetou liquidez de volta ao sistema e aliviou a restrição aos bancos nos piores momentos da crise. Várias medidas foram adotadas para proteger os bancos pequenos e médios. Houve, também, incentivo para redistribuir a liquidez dos bancos maiores para os menores (na crise, a liquidez tende a concentrar-se nos bancos maiores e públicos, que são vistos como mais seguros), inclusive com medidas de incentivo à compra das carteiras das instituições menores. A redução do compulsório pode não ter evitado a redução da oferta de crédito a empresas e consumidores, mas pode ter evitado o pior: sua total interrupção. De qualquer forma, como a perspectiva é de desaceleração da economia e incertezas futuras, os bancos tendem a ser mais cuidadosos, o que diminui o crédito disponível.
No mercado de câmbio, a política de acumulação de reservas nos momentos de bonança e de vendas nos períodos de crise equivale a uma política que age na contramão dos excessos em que o setor privado pode incorrer e suaviza os movimentos bruscos da taxa de câmbio (os chamados overshootings). Suavizar os movimentos bruscos do câmbio evita o impacto agudo sobre poucos e ajuda a distribuir o risco entre vários. Mas suavizar o movimento não se pode confundir com evitar completamente a flutuação do câmbio, que é útil para incentivar as exportações e reduzir o passivo externo do Brasil no momento de crise (como uma boa parte do passivo do País é denominada em real, sua depreciação reduz o valor em dólares disponível para remessa).
Os objetivos propostos não contemplam a manutenção do crescimento do crédito nos níveis acelerados de outrora (30% ao ano até recentemente). Também não incluem a manutenção do atual crescimento acelerado do PIB numa economia mundial que vai exigir moderação. O Brasil não é uma ilha de tranqüilidade no meio desta crise secular no resto do mundo. Não é o momento de artificialmente tentar manter o crescimento e pressionar a conta corrente (cálculos da Ciano indicam que, neste caso, o déficit pode chegar a 4%), o que, num ambiente sem financiamento internacional adequado, levaria à depreciação do câmbio e à inflação.
Há também que tomar redobrado cuidado para que a crise internacional e seus efeitos no Brasil não sejam usados como pretexto para beneficiar setores específicos (sem contrapartida para o todo) ou avançar projetos políticos rejeitados pela sociedade até então. No meio do afã de reagir à crise, é necessário cuidado para não aprovar medidas que não tenham relação com a crise e com os objetivos acima.
Nesse clima ativista já se escutam até os antigos chamados por mudanças no tripé macroeconômico - câmbio flutuante, metas de inflação e responsabilidade fiscal -, não obstante os resultados favoráveis obtidos nos últimos dez anos e a perspectiva para a frente. A flexibilidade que o tripé proporciona é o maior trunfo macroeconômico para estes momentos mais difíceis (o regime de metas tem flexibilidade para que a política monetária incorpore os efeitos da crise, o câmbio flutue e reduza o passivo externo).
Em suma, em tempos de crise é necessário resguardar a economia dos efeitos nocivos da falta de crédito internacional, protegendo a saúde do sistema financeiro doméstico, redistribuindo liquidez (entre governo e o setor privado e entre bancos grandes e pequenos) e evitando movimentos excessivamente bruscos na taxa de câmbio. O BC tem sido bem-sucedido nessas tarefas até o momento. Não há tempo a perder com falsos novos debates sobre o tripé macroeconômico (por exemplo, câmbio tem de flutuar?) e com medidas setoriais que não visem, em última instância, ao bem-estar da economia com um todo.
Ilan Goldfajn, sócio da Ciano Investimentos, diretor do Iepe da Casa das Garças, é professor da PUC-Rio. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br