Título: Pelo desenvolvimento do País
Autor: Godoy, Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2008, Espaço Aberto, p. A2

Um boletim distribuído pela Advocacia-Geral da União (AGU) em 29 de agosto dá a dimensão da abrangência de problemas que podem atrasar, interromper ou impedir que obras de infra-estrutura sigam o curso adequado no Brasil - com conseqüências negativas para a geração de empregos, renda e desenvolvimento. Dois órgãos da AGU conseguiram, na Justiça, suspender o registro imobiliário de um terreno na Ilha de Santo Antônio, localizada no Rio Madeira. O imóvel fora vendido pelo Incra, mas os antigos proprietários descumpriram regras previstas no contrato: não pagaram parcelas devidas, não utilizaram o imóvel para atividades agropecuárias e nunca moraram no local, onde apenas posseiros trabalhavam. A ilha é estratégica por ser o local de implantação do canteiro de obras da Hidrelétrica de Santo Antônio, com 2.218 Megawatts (MW) médios. A demora na desapropriação poderia significar a perda da janela hidrológica - período de menor intensidade de chuvas e baixa vazão do rio - e um atraso de meses no início da construção. O problema foi resolvido. Os posseiros, por fim, aderiram a um plano de compensação.

Outra história também ilustra o desafio. O último leilão de energia nova, realizado no dia 30 de setembro, viabilizou a construção de 24 usinas com capacidade de gerar 3.125 MW médios, energia esta que será entregue a partir de 2013. Somente 3,8% serão produzidos por hidrelétrica (UHE Baixo Iguaçu, localizada no Paraná). O restante será gerado por plantas térmicas, incluindo 1.976 MW médios (63,2%) que serão gerados por usinas que utilizam óleo combustível - mais poluente e caro - como insumo. Essa única hidrelétrica, aliás, quase foi barrada, por causa de uma decisão judicial emitida na véspera do certame. Dia 29 de setembro, às 19 horas, uma ordem judicial anulou a validade da licença ambiental prévia da usina, documento imprescindível para que fosse a leilão. Já no dia 30, à 1 da madrugada, três órgãos da AGU agiram, pedindo a revogação do ato. Logo em seguida, às 2h20, um tribunal federal suspendeu tal decisão proibitiva e manteve vigente a licença ambiental, que permitiu, com sucesso, viabilizar a construção da hidrelétrica.

Casos como esses se repetem constantemente. Em abril de 2008, um levantamento da AGU mostrou que havia 619 ações contestando obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Justiça. Em setembro já eram 923. O problema ganhou tamanha dimensão e rotina que profissionais do mercado cunharam uma palavra própria para mencionar o tema: judicialização. O termo significa o envio sistemático de contestações de toda ordem para os tribunais resolverem. A infra-estrutura, infelizmente, tornou-se um terreno fértil para isso, independentemente do mérito dos pleitos. Há uma enormidade de fases e trâmites que precisam ser cumpridos para a construção de uma obra. Há muitos órgãos públicos e instituições civis que interagem diretamente, muitos deles com poder de veto, com multiplicidade de funções e interesses, algumas vezes sobrepostos. Em determinadas situações, há ainda conhecimento insuficiente a respeito do funcionamento dos mercados, inclusive preconceito, ressentimento e viés ideológico e político. Está pronto o caldo para o surgimento de conflitos - e a busca de solução na Justiça.

A judicialização, em tese, não é um problema. Em democracias consolidadas, o Poder Judiciário é o receptáculo de conflitos da sociedade e a imaginária ausência de ações judiciais representaria também um defeito. O problema não é, então, a judicialização, mas sim o excesso dela, pois cada obra postergada custa caro à sociedade. É difícil e subjetivo calcular o prejuízo, mas é possível oferecer alguns indicadores desse passivo. A dificuldade em conseguir licenças ambientais para hidrelétricas onera a sociedade em geral. A Hidrelétrica Baixo Iguaçu, por exemplo, vai gerar 121 MW médios de energia, ao custo de R$ 98,98 por Megawatt/hora (MWh). Já os 1.976 MW médios oriundos de termoelétricas movidas a óleo combustível custarão, quando acionados, cerca de R$ 360 por MWh. Por isso é urgente buscar formas de diminuir essa escalada de ações judiciais na infra-estrutura, seja pelo diálogo ou por instrumentos legais, como a criação de instâncias para conciliação e arbitragem ou até de varas especializadas, e também pelo aperfeiçoamento dos agentes públicos e privados em assuntos relativos a regulação e direitos econômicos.

Para buscar o entendimento necessário para diminuir esses conflitos a Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base (Abdib), que congrega os principais agentes de infra-estrutura, e a AGU, que administra uma importante estrutura advocatória no País, promovem, de hoje até sexta-feira, em São Paulo, um seminário inédito que colocará, em diversos painéis e oficinas, profissionais de todas as instituições envolvidas com os conflitos no setor de infra-estrutura, incluindo empresas públicas e privadas, institutos como Ibama e Funai, a própria AGU, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Poderes Judiciário e Executivo. No total, serão 60 horas de discussão, apresentação de casos e oferta de propostas para minimizar a escalada da judicialização, tendência que tem feito as obras de infra-estrutura no Brasil se enroscarem num espinheiral que posterga o avanço econômico e social.

Esse debate é uma oportunidade única para que os agentes se dispam de ideologias, utopias e preconceitos e busquem ampliar o escopo das instituições que defendem e nas quais atuam, mirando não somente o foco próprio de atuação de cada uma, mas fundamentalmente um objetivo maior: o desenvolvimento do País.

Paulo Godoy, presidente da Abdib, é integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)