Título: A insensata reforma tributária
Autor: Maciel, Everardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2008, Economia, p. B2

A palavra reforma, especialmente nos países em desenvolvimento, ganhou uma acepção que em muito transcende a original. Almeja ser panacéia para problemas econômicos, sociais ou políticos, sem que exista um mínimo consenso quanto ao seu conteúdo e, muito menos, quanto à sua viabilidade. Essa percepção, evidentemente, não significa negar a existência dos problemas que motivam a demanda por reformas.

Projetos de reforma tributária no País não fogem à regra. Em geral, são soluções inadequadas para problemas mal formulados. Sua tramitação no parlamento esbarra em profundos conflitos de interesses, resultando invariavelmente em impasses.

O Poder Executivo enviou ao Congresso a PEC nº 233/2008. Trata-se de uma rica coleção de equívocos e inconsistências. O substitutivo apresentado pelo relator da matéria na Câmara dos Deputados elimina alguns desacertos da proposta original e introduz outros. O erro essencial da proposta consiste na escolha da via constitucional para produzir alterações legislativas.

A Constituição e suas disposições transitórias têm 260 artigos, parágrafos, incisos e alíneas que tratam diretamente da matéria tributária. Seguramente, é um recorde internacional. Por isso mesmo, os litígios tributários seguem longa trajetória no Judiciário, produzindo insegurança jurídica e desequilíbrios competitivos entre contribuintes.

O substitutivo da PEC contém 370 (!) normas, nelas incluídas as transitórias, as revogatórias e as de eficácia, que introduzem alterações e acréscimos no texto constitucional. Malgrado isso, as principais proposições nele contidas poderiam ser efetivadas por normas infraconstitucionais: unificação e eliminação de cumulatividade nas contribuições sociais por meio de lei ordinária; instituição do princípio do destino e unificação da legislação do ICMS, respectivamente, por resolução do Senado e por lei complementar. No texto constitucional são fixadas alíquotas de impostos e refeitas partilhas e vinculações de tributos, engessando dramaticamente matéria já excessiva no texto vigente. Cria-se um imposto cuja denominação discrepa do apelido que recebeu na mensagem que encaminhou a PEC (IVA-Federal). O objetivo seria unificar contribuições sociais (PIS, Cofins e Salário-Educação), mas, surpreendentemente, logo em seguida, se procede à sua vinculação às mesmas destinações das contribuições originais. O disciplinamento desse desconhecido tributo fica para legislação infraconstitucional.

Pretende-se a unificação da legislação do ICMS e confere-se essa competência ao Confaz, órgão administrativo integrado pelos secretários de Fazenda dos Estados. Não resta a menor dúvida, consideradas experiências recentes como a do Supersimples, que essa legislação será mais complexa que as 27 vigentes leis do ICMS. Não bastasse essa usurpação da já combalida função legislativa do Congresso, o substitutivo estabelece àquele órgão várias atribuições constitucionais.

É um ultraje aos princípios democráticos admitir que o Senado possa tão-somente aprovar ou rejeitar, sem poder para modificar, projetos de iniciativa de governadores ou seus representantes no Confaz ou, ainda, das Assembléias Legislativas, visando ao enquadramento de produtos e serviços nas alíquotas do ICMS.

Proclama-se a necessidade de adoção do princípio do destino a pretexto de pôr termo à guerra fiscal do ICMS. Essa competição fiscal nociva só persiste por duas razões: primeiro, porque ninguém efetivamente se dispõe a acabá-la, consistindo em verdadeira hipocrisia sua condenação; segundo, porque a legislação aplicável não é observada, representando flagrante omissão do Judiciário. Essa guerra fiscal poderia ser combatida pela simples observância da vigente Lei Complementar nº 24, de 1975, que, aliás, demanda aprimoramentos.

Além de não assegurar o fim da guerra fiscal, a adoção do princípio do destino traz inúmeros problemas: perdas fiscais para Estados superavitários na balança interestadual, só compensáveis com fundos financiados por aumento da carga tributária; propensão à sonegação fiscal, por induzir a conversão de operações internas em interestaduais; sujeição dos contribuintes de um Estado ao Fisco dos demais, pois o interesse federativo estará no destino; desproporcional acúmulo de créditos em empresas com grande volume de operações interestaduais, tornando-as dependentes de tortuosos processos de compensação e restituição.

Sem esgotar o universo de equívocos e inconsistências, parece que a PEC é uma extraordinária e infeliz contribuição para o já demonizado caos tributário.

*Everardo Maciel, consultor tributário, é ex-secretário da Receita Federal (1995 a 2002)