Título: Renda dos mais pobres cresce abaixo da média da população
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2008, Economia, p. B10
No momento em que a crise internacional ameaça diversos avanços econômicos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente deve enfrentar também uma séria ameaça a umas das suas principais conquistas sociais: a queda acelerada da miséria, que ocorre desde o início da década, mas foi consolidada no atual governo. Recente pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que a situação dos 5% mais pobres passou por uma reviravolta nos períodos de 2001 a 2004 e de 2004 a 2007. Esse grupo corresponde à metade inferior dos 10% dos brasileiros que são considerados extremamente pobres.
Enquanto no primeiro período a fatia dos 5% mais pobres foi a que teve o maior aumento de renda, a partir de 2004 esse crescimento ficou abaixo da média da população. O pior, porém, é que a situação pode estar se agravando: em 2007, a renda daquele grupo caiu 13%, enquanto a da população como um todo subiu 3,7%.
Segundo o levantamento, feito com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a renda familiar per capita dos 5% mais pobres cresceu 7,9% ao ano entre 2001 e 2007. Avanço muito melhor que o da população total, cuja renda aumentou uma média de 2,5% ao ano no período. A renda dos 5% mais ricos cresceu apenas 0,9% ao ano entre 2001 e 2007 - a diferença de ritmo em relação aos 5% mais pobres dá a dimensão da melhora na distribuição no período.
Os números mascaram, porém, uma forte mudança, a partir de 2004, exatamente quando os motores econômicos do Brasil começavam a se acelerar. Entre 2004 e 2007, a renda dos 5% mais pobres cresceu 4,1% ao ano, bem abaixo dos 6,4% da população como um todo. Em outras palavras, um contingente de 9,5 milhões de brasileiros, na base da pirâmide social, cuja renda familiar per capita média em 2007 era de apenas R$ 25, viu seus rendimentos crescerem menos que os da população em geral. Na verdade, o crescimento anual da renda daquele grupo também foi inferior, no período, ao dos 5% mais ricos, que atingiu 4,9%.
A situação é pior quando se olha só o rendimento do trabalho dos diversos grupos - isto é, quanto as famílias ganhavam, excluindo-se rendas como transferências sociais, aluguéis e aplicações financeiras. Entre 2004 e 2007, a renda do trabalho dos 5% mais pobres (em renda total) caiu 1,3% ao ano, na média, enquanto a da população como um todo crescia 5,8%. Em 2007, a renda do trabalho dos 5% mais pobres caiu 12% e a da população total subiu 5,2%.
¿Esse problema de os mais pobres entres os pobres ficarem para trás é um dos grandes desafios da política social na próxima década¿, diz Paes de Barros, um dos maiores especialistas em pobreza do Brasil. Consultor do governo Lula em áreas como política social e educação, ele acha que o fato de a ¿cauda inferior da distribuição de renda¿ - a metade mais pobre da população miserável - estar ficando para trás pode indicar que o modelo do Bolsa-Família, um sucesso no combate à pobreza e à desigualdade, já não exerce impacto satisfatório na franja mais baixa da sociedade.
O economista explica que há três formas de se pensar o combate à pobreza. O primeiro é o alívio, com transferência de renda, como a do Bolsa-Família. O segundo é o combate estrutural à pobreza da próxima geração. O Bolsa-Família também tenta atuar nessa segunda dimensão, ao criar condicionalidades ligadas à educação e à saúde das crianças e adolescentes das famílias que recebem o benefício.
O problema dos 5% mais pobres está ligado à terceira dimensão do combate à pobreza, que é a tentativa de fazer com que a geração adulta atual deixe de ser pobre estruturalmente, com ganhos de renda do próprio trabalho. De um modo geral, isso tem ocorrido - a renda do trabalho dos 40% mais pobres cresceu bem mais que a média do País de 2001 a 2007.
META DO MILÊNIO
Paes de Barros acrescenta que, já em 2005, o País conseguiu uma redução da extrema pobreza mais que suficiente para cumprir a meta de desenvolvimento do milênio, prevista apenas para 2015 (de reduzir pela metade, ante 1990, a proporção da população que vive com menos de um dólar por dia).
Os 5% mais pobres, porém, parecem cada vez mais excluídos daquela melhora estrutural, como fica claro na queda anual média da renda do trabalho de 1,3% de 2004 a 2007. Segundo Paes de Barros, o governo vai enfrentar dilemas difíceis para a chamada ¿porta de saída¿ do Bolsa-Família. A idéia - que, de certa forma, já vem ganhando corpo - de se agregar uma cesta opcional de elementos estruturais para cada família do programa, como microcrédito, alfabetização, qualificação, etc, pode não funcionar.
A dificuldade, segundo o economista, é que o grupo dos 5% mais pobres (ele frisa que não é um contingente fixo da população e pode haver variação de ano a ano) é tipicamente muito isolado, em termos geográficos, econômicos e até sociais. ¿Iniciativas estruturais a conta-gotas podem não dar certo.¿
Uma alternativa seriam grandes intervenções, de base territorial, nessas comunidades, que podem incluir populações como quilombolas ou catadores de caranguejos, para reorganizar sua vida socioeconômica e aumentar coletivamente a produtividade. Um exemplo são os arranjos produtivos locais (APLs), que incluem assessoria técnica, de comercialização, abertura de vias de escoamento.
¿Seria trocar o `pouco para muitos¿ do Bolsa-Família pelo `muito para poucos¿¿, explica. Em vez de gastar centenas de reais por ano por família, gastar alguns milhares de reais. O problema é que poderiam faltar dinheiro e recursos humanos no governo para programas que abrangessem quase 10 milhões de miseráveis. Seria preciso optar por comunidades indigentes, em detrimento de outras, uma ¿escolha de Sofia¿ que o Bolsa-Família não tem de fazer.