Título: O resgate moral da América
Autor: Neto, João Mellão
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2008, Espaço Aberto, p. A2

A eleição consagradora de um negro para ocupar a presidência dos Estados Unidos da América é um fenômeno que merece ser estudado. Barack Obama, de início, já tinha contra ele três obstáculos que o inviabilizavam. Ele não é um wasp (branco, anglo-saxão e protestante, na sigla em inglês) e, até hoje, o único eleito que não preencheu esses requisitos foi John Kennedy, que era católico. Obama só preenche um deles: é protestante. Outro óbice é a idade: os americanos raramente elegem alguém com menos de 50 anos. Obama, Bill Clinton e Kennedy foram os únicos a vencer esse preconceito, elegendo-se na faixa dos 40.

Isso já bastaria para descartá-lo, mas tem mais: Obama não tem nenhuma experiência administrativa. É senador há somente três anos e provavelmente nem conhece o prédio do Senado por inteiro. Ninguém tem como dizer qual é o seu plano de governo. Suas palavras são messiânicas e não têm, ao menos, um mínimo de detalhamento. Dele se conhece apenas a recorrente palavra de ordem: ¿É preciso mudar, acredite, você pode fazê-lo!¿

Ora, Obama jamais esclareceu quais são as mudanças que vai fazer. Seu discurso é, mal comparando, como uma meia de nylon: entra fácil em qualquer pé. Mesmo assim, ele é fascinante, arrebata todas as platéias a que se dirige. Seu passado é impecável. Se por acaso fosse católico, jamais, mesmo na infância, cogitaria, num inocente desejo, de mordiscar uma hóstia. Imagine-se, então, como se teria comportado se fosse tentado por pecados mais graves.

Com um passado sem jaça e uma pregação vaga e irresistível - afinal, quem é contrário a mudanças? -, Obama revela-se uma pessoa inatacável. Sua pregação, imprecisa e atraente, na sua boca, é irresistível. Seu apelo - místico e messiânico na dose exata - se multiplica ainda mais na medida em que se recusa a explicitá-lo. Ele se acha o agente das mudanças. Obama, acreditam todos, é o presidente ideal para realizá-las. Por seu passado, sua determinação e seu destemor, no imaginário popular é um messias providencial que vai empreender as mudanças que se fazem necessárias.

A maior nação da Terra está moralmente frágil. Homens públicos com o perfil, a pregação ética e a eloqüência de Barak Obama, em outras épocas, seriam ridicularizados. Atualmente, diante das graves feridas que gangrenam a América, o que se passa é o contrário. Pessoas como Obama, no momento especial e delicado que o país vive, ao contrário, revelam-se extremamente oportunas e urgentes. Jimmy Carter, na década de 70, com seu discurso piegas e moralista, só se elegeu presidente no rastro da vergonha que os americanos sentiam em razão do comportamento injustificável do presidente Richard Nixon, nem tanto no caso Watergate, mas pelos pecados éticos que cometeu para encobrir sua participação e total cumplicidade, cabalmente demonstradas logo depois.

Explica-se: os Estados Unidos da América, embora poucos no estrangeiro se dêem conta disso, são, ao mesmo tempo, a mais poderosa, pujante e - surpresa! - a mais moralista, ética e religiosa nação do Ocidente. Até a desastrosa gestão de Bush filho, todos os países, por puro e improcedente hábito, atribuíam a culpa de todas as suas mazelas - invariavelmente criadas por eles próprios - ao extremamente poderoso e pujante colosso das Américas. Até aí, não havia problema algum. Os Estados Unidos, desde que passaram a liderar o mundo - por volta do final do século 19, ao sobrepujarem economicamente a Inglaterra -, tinham como sagrado princípio jamais entrar numa guerra sem terem recebido desesperados pedidos de socorro de nações amigas, agredidas por despóticos vizinhos, que quase sempre estavam empreendendo uma guerra de conquista. Havia uma exceção: o país se mobilizava, com todo o direito, quando uma nação qualquer, pelos mais variados motivos, atacava suas bases militares ou suas empresas no exterior. Nota-se esse espírito, claramente, na explícita relutância com que entrou tanto na 1ª como na 2ª Guerra Mundial. Sua participação, em ambos os casos, foi decisiva. Invariavelmente vencedores, os americanos, em todos os conflitos, abriram mão de conquistar territórios dos vencidos e nunca ousaram deles exigir as famigeradas ¿reparações de guerra¿, porque entendiam que isso, na verdade, não era mais do que os execráveis butins tão costumeiros ao final dos combates, pelo menos até a 1ª Grande Guerra. Os ¿ianques¿, ao contrário da maioria de seus aliados, não apenas se abstinham de saquear os derrotados como também despendiam fortunas vultosas para reerguer a economia de seus ex-inimigos, exigindo em troca que dali em diante estes adotassem o regime democrático pleno.

Por sempre terem agido dessa forma, os cidadãos norte-americanos podiam, de fato e de direito, perambular pelo mundo de cabeça erguida. Entendendo, com razão, que todas as eventuais agressões e ofensas que sofressem eram motivadas pela mais mesquinha e vil das invejas.

Toda essa superioridade moral, que era tão cara aos cidadãos norte-americanos, se perdeu, quase por inteiro, quando George W. Bush, talvez para vingar os vergonhosos resultados obtidos pelos ¿ianques¿ na primeira Guerra do Golfo - aquela em que um conjunto de nações se uniu para desalojar as tropas de Saddam Hussein do Kuwait -, tratou, logo depois de assumir a presidência, de quebrar todos os códigos de ética seguidos à risca pelos Estados Unidos em guerras no exterior.

Bush filho, sem ter sido agredido e sem ter em mãos um argumento minimamente justo, invadiu o Iraque, quebrando um precedente sagrado da ética norte-americana. Resultado: os norte-americanos acabaram perdendo, perante o mundo, a autoridade moral que a duras penas haviam conquistado.

A América precisa de um Obama, para resgatar a autoridade moral que estupidamente perdeu. Que Obama o faça, com total destemor.

João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado E-mail: j.mellao@uol.com.br