Título: Os impactos diferenciados da crise
Autor: Palocci, Antônio
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2008, Espaço Aberto, p. A2

No debate sobre as ações dos governos ante a crise financeira atual vale a pena observar uma questão de fundo: o impacto da crise nos países não ocorre de maneira idêntica e simultânea. Ele é diferenciado, atingindo economias de diferentes maneiras e exigindo, assim, múltiplas e adequadas respostas. A simples transferência de medidas de um país para outro não é boa conselheira nessa situação.

É verdade que há efeitos comuns e globais na turbulência e o principal deles é um extraordinário aumento da aversão ao risco, com redução da liquidez e um quase congelamento do crédito.

Fora essa questão geral, porque sistêmica, que tem sido tratada pela garantia às instituições bancárias onde ela se apresentou de forma mais intensa, a situação em cada país varia bastante, em função dos fundamentos de suas economias. Uma estratégia para evitar o pior da crise exige, portanto, ações específicas, diferenciadas e adequadas no espaço, na forma e no tempo.

Um exemplo das distinções fundamentais entre países é a evolução do consumo do varejo nos EUA e no Brasil. Lá, o consumo está em queda generalizada e consistente, porque se reconhece a inevitabilidade do ajuste macroeconômico, postergado por anos de política monetária folgada e expansão fiscal. O consumidor, ao pensar no futuro, não reagiu sequer ao pacote de devolução de impostos iniciado em abril. Na crise das torres gêmeas, o governo Bush já havia utilizado o expediente da devolução de impostos, obtendo algum efeito no aumento do consumo de bens duráveis, já que a percepção na época era de um choque de curto prazo. Agora, o cidadão americano resolveu guardar o dinheiro ou utilizá-lo para saldar dívidas, porque vê dias difíceis pela frente.

No Brasil, o consumo no varejo ainda segue forte porque, apesar do aumento do crédito nos anos recentes, as famílias não estão endividadas e o País não tem grandes gargalos no balanço externo que pudessem precipitar uma crise. Há sinais, claro, de queda no caso de bens duráveis, mas pela falta aguda de crédito. Nos serviços e bens não-duráveis, no entanto, o consumo se mantém a taxas elevadas.

Um indicador dos motivos da diferença de tendências aqui e nos EUA é a evolução recente do emprego nas duas economias. Enquanto o Brasil gerou mais de 2 milhões de empregos formais neste ano, nos EUA houve queda de 1,2 milhão de empregos no mesmo período.

Outra diferença está nas conseqüências das variações cambiais sobre a dívida externa. Na Europa do Leste, o impacto do câmbio tem levado a um forte aumento da dívida líquida, como ocorreu no Brasil em crises passadas. Aqui, no entanto, houve uma diminuição líquida, dada a posição atual do País de credor em moeda estrangeira. Talvez por isso é que eles tiveram de buscar apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e nós não precisamos fazê-lo.

No Brasil, o primeiro impacto importante da crise também se deu sob a forma de drástica redução das linhas de financiamento. As respostas do governo a esse problema têm sido enérgicas e diretas, aliviando muito a situação, embora o crédito ainda não se tenha restabelecido plenamente.

Mas o stress financeiro é apenas a primeira onda. Mesmo que ele arrefeça, inclusive nos países desenvolvidos, deverá haver marcada desaceleração da economia real, afetando a vida das empresas, os empregos e os salários por algum tempo. Isso acontecerá nos países desenvolvidos, ainda que eles adotem políticas de estímulo fiscal.

Também é certo que o crescimento no Brasil vai desacelerar. É realmente lamentável que isso ocorra, mas lamentar de nada adianta. É preciso cuidar para que o impacto seja, tanto quanto possível, suavizado no tamanho e no tempo. É natural, por exemplo, que haja alguma queda nas vendas de bens duráveis. Mas não é natural que as vendas sejam paralisadas abruptamente por absoluta falta de crédito. No curto prazo, portanto, o crédito público tem um papel importante, que vai além das medidas de política monetária já tomadas.

Sua expansão pode ser necessária até que a situação de obstrução das artérias do crédito seja superada nos planos mundial e nacional. A extensão do prazo de recolhimento de impostos e contribuições é uma resposta positiva e que vai direto ao ponto. Mas o fornecimento de novas linhas de crédito continuará sendo uma necessidade para se evitarem contrações traumáticas no curto prazo.

Mas para que as empresas realmente planejem sua produção e suas vendas, acomodem seus procedimentos e se preparem para um período mais difícil é indispensável que o governo faça alguma sinalização que vá além de medidas de apoio emergencial, por maiores que elas sejam.

Medidas de melhoria do funcionamento da economia continuam necessárias e terão papel fundamental para vencermos a crise. Na medida em que o mundo nos vai ajudar muito menos nos próximos anos, temos de nos ajudar muito mais, continuando o trabalho das reformas estruturais e microeconômicas. Melhorar o ambiente de negócios e fortalecer as instituições reguladoras é um trabalho que deve ser permanentemente valorizado.

Igualmente importante é evitar, neste momento, a eclosão de problemas internos que impactem negativamente a estabilidade econômica. Temas em tramitação no Poder Judiciário, como os relativos aos planos econômicos do passado ou a legislação de capitalização de juros de poupança e empréstimos, precisam do melhor tratamento, seja no próprio Judiciário ou no aperfeiçoamento da legislação no Congresso. Qualquer legislação que traga riscos à Previdência Social também deve ser evitada.

Encarar com tranqüilidade e sabedoria um processo de desaceleração é a melhor maneira de encurtar o tempo para o início de uma retomada vigorosa do crescimento.

Antônio Palocci, deputado federal (PT-SP), foi ministro da Fazenda