Título: Garibaldi redime o Senado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/11/2008, Notas & Informações, p. A3
A respeito da Medida Provisória (MP) das filantrópicas, que já comentamos nesta página editorial, o melhor resumo seria o feito pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), quando disse que a medida ¿é imoral, aética, indecorosa, não obedece a nenhum preceito e, principalmente, é uma afronta ao Congresso¿. Mas o fato de o presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), a ter ¿devolvido¿ ao Planalto é de importância maior do que o simples repúdio a um notório rebotalho legislativo, que nem os parlamentares governistas com perfis de seriedade (e os há) haveriam de aprovar.
Com essa ¿devolução¿ o presidente do Senado redime o Legislativo e sinaliza a marca de independência que pretende imprimir neste Poder, livrando-o da crônica submissão ao Executivo que nem o processo de redemocratização do País logrou reverter. Pelo contrário, aprofundou-a. O instituto da Medida Provisória, que deita raízes nos decretos-lei do regime militar, foi abrigado pela Constituição em nome da governabilidade, já que em certas circunstâncias o governo precisa tomar medidas urgentes que não podem ficar na dependência de debates legislativos às vezes intermináveis. Mas a Constituição estabelece as condições que facultam a adoção das MPs no artigo 62, que reza: ¿Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.¿ Portanto, relevância e urgência são essenciais ao mecanismo das MPs. Só que a enxurrada constante e cada vez mais caudalosa dessas ¿leis¿ provenientes diretamente do Executivo vem engolfando a independência e com ela a dignidade do Parlamento - não só no governo Lula, mas também nos que o antecederam.
Desde que assumiu a presidência do Senado, depois que a Câmara Alta havia se submetido ao longo e doloroso processo de desmoralização causado por seu ex-presidente Renan Calheiros (PMDB-AL), Garibaldi Alves Filho desenvolveu um esforço de recuperação da imagem da Casa que até surpreendeu aos que só viam nele um parlamentar pacato, sem muito brilho, de fala muito calma e meio arrastada - e que mandara fazer cinco novos ternos para a honrosa posse. De lá para cá Garibaldi tem demonstrado que mereceu muito a roupa nova, pois está conseguindo defender a instituição parlamentar como poucos já o fizeram.
Não é de hoje, a propósito, que políticos de todos os partidos - não só oposicionistas, mas também governistas - têm criticado com veemência tanto o excesso quanto a irrelevância e a falta de urgência de um amontoado de MPs expedidas pelo Planalto. Mas a reação se esgotava nesses protestos, às vezes até ¿docemente constrangidos¿, pois parecia cômodo a muitos legisladores federais deixar que o governo assumisse a responsabilidade de disciplinar matérias até eleitoralmente impopulares. Garibaldi foi além das muitas críticas que fez às MPs e assumiu a responsabilidade - e o precedente - de devolver uma delas ao governo. Diga-se, aliás, que escolheu bem a primeira MP a ser devolvida, a 446 das filantrópicas - algo não feito desde 1989. Poucas MPs mereceriam tanto quanto esta o apelido de ¿Proposta Indecente¿.
A reação do Planalto foi bem expressa pelo ministro de Relações Institucionais, José Múcio, nestes termos: ¿Não estávamos preparados para um gesto político e inusitado como este. (...) Eu tinha informações de que isso aconteceria, mas não acreditei. Em 20 anos, nunca vi isso.¿ Quer dizer, em 20 anos, o Planalto nunca vira o Parlamento exercer, com independência, seu direito legítimo e constitucional de devolver uma Medida Provisória - não relevante, não urgente e sobretudo imoral.
Como o presidente do Senado tomou a decisão de devolver a MP quando ela já estava tramitando - e não tão logo deu entrada no plenário da Casa -, o indefectível líder governista Romero Jucá (PMDB-RR) pode recorrer à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado contra a decisão do presidente Garibaldi. É o parecer dessa Comissão que deverá ir a plenário - que deliberará ao final sobre a vigência ou não da MP 446. Esperemos que os ilustres membros do Senado da República não percam essa preciosa oportunidade de recuperar a independência, tanto quanto a dignidade da instituição.