Título: Obama e o Brasil
Autor: Lampreia, Luiz Felipe
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2008, Espaço Aberto, p. A2

Em reunião com políticos brasileiros no início de seu mandato, George W. Bush surpreendeu-se com a informação de que havia negros no Brasil. Foi preciso que sua então assessora de segurança, Condoleezza Rice, uma negra de grande qualidade intelectual, lhe dissesse que o Brasil é o maior país de população negra fora da África. Barack Obama não cometerá esse equívoco patético. Tampouco deixará de estar plenamente ciente de que o Brasil é a quarta maior democracia, a nona economia do mundo e um participante cada vez mais relevante da cena internacional. A ênfase social que caracteriza as visões dos presidentes Lula e Obama será também um fator positivo, assim como a presença moderada do Brasil no cenário sul-americano, onde figuram radicais como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Por isso, creio que o novo titular da Casa Branca dará grande atenção a nosso país, ainda que não o faça com intensidade no primeiro momento de seu governo, já que problemas gravíssimos demandarão sua atenção e o Brasil certamente não figura nesse rol.

Será muito importante a colocação inicial do relacionamento bilateral pelo governo brasileiro. Insistir em temas que certamente têm méritos, mas estão totalmente bloqueados no momento, como a famosa cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, só pode conduzir a frustrações. A inexplicável visita do ministro Celso Amorim a Teerã foi também um gesto gratuito, que, se acompanhado do convite ao presidente Mahmoud Ahmadinejad para visitar o Brasil, não deixará de afetar seriamente as nossas relações com os Estados Unidos e com as maiores potências ocidentais, criando empecilhos para a elevação de patamar do Brasil no cenário internacional. Ao contrário de freqüentar personagens excluídos do convívio da comunidade internacional, a afirmação da autonomia brasileira deve ser feita por tudo o que há de positivo na presença internacional de nosso país: o vigor e a robustez crescentes da economia, inclusive em termos comparativos, a existência de instituições consolidadas e provadas, a ordem jurídica estável, a crescente atuação de nossas grandes empresas no mercado internacional, uma história diplomática centenária e respeitável.

Fala-se muito no protecionismo de Obama e de seu partido, o que é em geral verdadeiro. Mas, no que diz respeito às nossas relações bilaterais, a tradicional ligação sindical que impulsiona este protecionismo importa pouco, já que as manufaturas que exportamos hoje para os Estados Unidos não são mais, como há 30 anos, concorrentes de indústrias americanas declinantes: calçados, ferro-gusa, têxteis e confecções, etc... Hoje nosso problema é com o protecionismo agrícola do ¿Farm Act¿, que distorce a concorrência com enormes subsídios à produção doméstica e mantém fora do mercado americano os produtos mais competitivos do Brasil - o açúcar, o suco de laranja, a carne e, sobretudo agora, o etanol. A superação gradual destas barreiras, que é advogada por importantes setores da economia e da opinião pública nos Estados Unidos, seria a maior contribuição que o presidente Obama poderia dar às nossas relações bilaterais comerciais.

Há muitas outras áreas em que os dois países poderiam aumentar a sua cooperação e o seu entendimento mútuo. A primeira delas é, com o apoio do governo Obama, um maior papel do Brasil no processo de decisão global nas instituições que emergirem da atual crise econômica, como um G-8 expandido, ou em novos modelos de consulta e decisão, como o preconizado recentemente por Robert Zoellick, o presidente do Banco Mundial. Estou seguro de que o Brasil deverá participar ativamente destes novos diálogos.

Outra área promissora para o diálogo Brasil-Estados Unidos é a questão tão premente e atual das mudanças climáticas. Ambos os países até aqui não aceitaram a disciplina das metas obrigatórias para a emissões de CO2. Mas, no processo de negociação de um acordo pós-Kyoto , deveremos atuar em coordenação com os demais grandes responsáveis atuais pela criação do efeito estufa - China, Rússia, Índia -, que ainda estão alheios a esta disciplina essencial para o futuro do planeta. Obama já se comprometeu a dar passos nesse rumo. O Brasil tem também a responsabilidade e a possibilidade de adotar um papel de liderança, e não um postura defensiva.

Com a eleição de Barack Obama, surge a oportunidade de levar mais longe a cooperação Brasil-Estados Unidos. As palavras de um influente deputado federal brasileiro, citado em importante pesquisa feita entre o que chamou de comunidade brasileira de política externa, pelo professor Amauri de Sousa para o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), sintetizam de modo perfeito o rumo possível: ¿Face aos Estados Unidos, nossas relações devem buscar um equilíbrio entre cooperação e disputa, ao preço ou da capitulação dos interesses do Brasil ou do confronto, com o qual não temos nada a ganhar. É preciso ter um ambiente de franqueza e cooperação até para podermos colocar na mesa os contenciosos.¿

Há mais de cem anos, esta disjuntiva é colocada no Brasil. Entre os extremos da era Castelo - em que se acreditava que ¿o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil¿ - e as posturas antiamericanas até hoje em voga em certos círculos, é necessário buscar o ponto de equilíbrio, como vimos fazendo há mais de 15 anos.

Creio que, com o presidente Obama, os Estados Unidos saberão metabolizar a difícil realidade de seu menor poder relativo em função das várias e enormes crises que esta década lhes trouxe. Com isso se abrirá um novo horizonte de diálogo e de poder no qual o Brasil poderá estar inserido, se souber fazer a sua parte.

Luiz Felipe Lampreia, professor de Relações Internacionais da ESPM-Rio, foi ministro das Relações Exteriores