Título: Educação, subproduto do pré-sal?
Autor: Helene, Otaviano
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/11/2008, Espaço Aberto, p. A2

A divulgação de que os recursos gerados com a exploração do petróleo do pré-sal poderão ser vinculados ao financiamento da educação pública do País - e a ampla aceitação desta proposta pela sociedade - tem um (e apenas um) aspecto positivo: o reconhecimento geral da insuficiência de recursos para o setor. Entretanto, apesar desse mérito, tal vinculação apresenta muitos enganos.

A vinculação do desenvolvimento da educação pública à produção de petróleo no País só teria sentido se ela fosse um setor muito demandante de energia, o que não é o caso. Portanto, trata-se de uma associação tão esdrúxula quanto seria a vinculação da educação ao preço da soja no mercado internacional, ou ao uso da telefonia, ou à compra e venda de carros, etc.

O financiamento da educação não deve depender do bom (ou mau) desempenho da economia. O desenvolvimento educacional não pode ser um subproduto da economia, muito menos um subproduto de um único setor, como a produção de petróleo. É muita perversidade imaginar que a educação escolar das pessoas venha a variar paralelamente à cotação do petróleo ou à sua demanda.

Nas últimas décadas tivemos um exemplo das conseqüências negativas da vinculação da educação ao desempenho econômico. A crise econômica iniciada no final da década de 1970, que se prolongou ao longo de toda a década seguinte, teve como resultado a estagnação quantitativa do sistema escolar, que só voltou a apresentar um crescimento após 1990.

De um lado, com a crise econômica daquele período, pessoas e famílias viram aumentar suas dificuldades em arcar com as despesas induzidas pela condição escolar; de outro, o setor público intensificou as restrições orçamentárias. Assim, durante mais de uma década as taxas de conclusão da educação fundamental ficaram praticamente estagnadas em cerca de 30% e as do ensino médio, em perto de 20%. Essa estagnação provocou a subescolarização de enormes contingentes populacionais, que atualmente estão na idade economicamente ativa, criando problemas sociais gravíssimos e dificultando o crescimento econômico do País. Estabeleceu-se, assim, uma espécie de círculo vicioso, em que o declínio econômico prejudicou a educação; esta, ao deteriorar-se, concorreu negativamente para o desempenho da economia; e, novamente, os índices econômicos desfavoráveis incidiram prejudicialmente sobre os recursos destinados à educação...

Outro problema da vinculação do financiamento da educação aos recursos do pré-sal é quando e se estes existirão e também de quanto serão. As primeiras extrações só ocorrerão, dentro de uma perspectiva bastante otimista, daqui a pelo menos cinco anos, um tempo muito longo quando se leva em conta que atualmente cerca de 25% das crianças não concluem o ensino fundamental e que grande parte das que o concluem carregam consigo enormes deficiências - muitas delas, infelizmente, permanecendo analfabetas para qualquer fim prático.

No final do ensino médio, quase metade das pessoas já foram excluídas do sistema educacional. Portanto, não podemos depender de um eventual sucesso na exploração das reservas recém-descobertas de petróleo do pré-sal para enfrentar esse problema. A existência e a quantidade de recursos do pré-sal são de difícil estimativa: eles dependerão do custo da extração, do preço do petróleo no mercado internacional e do nível das necessidades de energia do País.

Se, de um lado, a educação não pode depender da produção de petróleo, de outro, não é razoável jogar todo o peso do financiamento da educação em seu custo. Em caso de sucesso, a produção do pré-sal pode ser estimada em centenas de milhões de barris de petróleo por ano, enquanto as necessidades adicionais de financiamento da educação pública são superiores a 4% do produto interno bruto (PIB) anual. A combinação destas duas cifras implicaria conseguir extrair de cada barril de petróleo algumas centenas de reais para financiar a educação, o que afetaria muito intensamente o custo da energia no País. Isso seria razoável?

Recuperar qualitativa e quantitativamente a educação pública em todos os níveis é uma tarefa urgente e que não pode depender do sucesso de uma única empreitada. Seu necessário financiamento deve ser buscado em toda a sociedade, e não apenas num setor, em particular um setor estratégico como o da produção de energia.

Atualmente, excluídas as maquiagens contábeis (como, por exemplo, a inclusão de despesas previdenciárias nas contas de educação), o Brasil investe apenas cerca de 3,5% de seu PIB em educação pública. A insuficiência desse porcentual explica o que está ocorrendo: classes superlotadas; professores mal remunerados, sobrecarregados e desmotivados; períodos letivos muito curtos e excesso de aulas vagas; aulas no período do almoço; escolas distantes do local de moradia dos estudantes, inexistência de laboratórios, etc. Não basta que a rede pública seja gratuita, é preciso oferecer aos estudantes pobres mais instrumentos de gratuidade ativa, ou seja, aquelas condições que lhes permitirão maior aproveitamento dos estudos: merenda, transporte, material escolar (livros, cadernos e outros), aulas extras quando necessárias.

As conseqüências da situação atual são a alta evasão escolar, as enormes deficiências de aprendizado e o desrespeito às escolas e àqueles que nela trabalham. Nada mudará se forem mantidos os atuais níveis de investimento. E vincular um possível aumento dos recursos à produção, ao preço e à demanda do petróleo extraído de uma fonte específica é um engano que se pode tornar uma perigosa ilusão.

Otaviano Helene, presidente da Associação dos Docentes da USP, professor do Instituto de Física da mesma universidade, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)