Título: O abuso piorado das MPs
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/11/2008, Notas & Informções, p. A3

Depende do Senado da República transformar em coisa séria a pantomima da proposta de emenda constitucional que altera a tramitação das medidas provisórias (MPs) no Congresso. O texto principal do projeto, aprovado terça-feira na Câmara por 363 votos a 50, praticamente obriga ao lugar comum - eis um caso típico de emenda pior do que o soneto. A intenção ostensiva dos legisladores era a de resolver o impasse decorrente do rito adotado para as MPs em 2002. Como se sabe, esses sucedâneos dos antigos decretos-leis, instituídos pela Carta de 1988, valem por 60 dias, prorrogáveis por outro tanto. Se ao fim do prazo não tiverem sido apreciados, perdem a eficácia. Para reduzir as chances de que isso aconteça - afinal, produzem efeitos reais tão logo são publicados -, decidiu-se que, passados 45 dias de sua edição, trancam a pauta de deliberações da Casa em que estiverem tramitando. O que, como tantas vezes tem sido denunciado, sujeita o calendário e as prioridades do Parlamento à agenda hegemônica do Executivo.

Pois bem. Pelo projeto vitorioso na Câmara, a partir do 16º dia de sua edição, uma MP adquire preferência, passando à frente de qualquer outra matéria em exame. A diferença em relação ao regime anterior é que esse privilégio poderá ser eliminado por decisão da maioria absoluta da Casa (257 deputados ou 41 senadores). No mais benigno dos julgamentos, é um contra-senso. No mais severo, uma grosseira farsa. Pela evidente razão de que se exige maioria qualificada para retirar do começo da fila uma MP - cuja aprovação requer apenas maioria simples. O ¿trancamento disfarçado¿, como a nova regra vem sendo chamada (poderia ser ¿falso destrancamento¿), não retira 1 grama da capacidade do Planalto de fazer o Congresso dançar conforme a sua música. Ao contrário. ¿A proposta dá ao governo a condição de obstruir e de manipular como queira a pauta de votações¿, diz o deputado Ronaldo Caiado. Essa condição só seria enfraquecida se a relação de forças entre situação e oposição não fosse tão desequilibrada como o lulismo conseguiu torná-la, já se sabe por que meios.

O pior ainda não é nem isso. Atualmente, antes de ir a plenário, uma MP precisaria passar por uma comissão de deputados e senadores que avaliaria se ela cumpre os requisitos constitucionais de relevância e urgência, podendo ser barrada em caso negativo. Mas é assim que se fazem as leis no Brasil: essa comissão só existe no papel; na prática, os parlamentares nunca se deram ao trabalho de cumprir a lei e as MPs seguem diretamente para exame da Câmara e do Senado. Agora, a emenda aprovada em primeira votação dá à Comissão de Constituição e Justiça da Casa, por onde se inicia a tramitação da MP, a atribuição de julgar se ela atende àqueles critérios. Mas isso e nada será o mesmo, porque - pasme-se - a comissão não terá o poder de barrar MP nenhuma. Querendo, como é mais do que previsível, o plenário acolherá tantas quantas não tiverem sido consideradas nem relevantes nem urgentes - o que vale para 80% delas. Esse é o clamoroso problema. Nos seus quase seis anos, o presidente Lula baixou 344 medidas provisórias (ante 365 de Fernando Henrique na soma dos seus dois períodos). Meses atrás, Lula chancelou o abuso. ¿É humanamente impossível governar sem medida provisória¿, disse.

A única alternativa ao poder imperial do Planalto e ao apequenamento do Congresso é o Senado rejeitar o endosso tácito da Câmara à ¿usurpação, pelas medidas provisórias, da prerrogativa de legislar¿, nas palavras do senador pernambucano Marco Maciel, do DEM. A questão-chave é a da admissibilidade das MPs. Trata-se de submetê-las, efetivamente, ao crivo de uma comissão especial, cujas decisões sobre a relevância e a urgência, em cada caso, sejam finais. Outro ponto crítico é o do uso da medida provisória para a abertura de créditos suplementares que não se destinem a atender a emergências (como agora, em Santa Catarina). A Câmara decidiu que o governo poderá recorrer a uma MP se o Congresso não votar em 75 dias um projeto de lei nesse sentido. É um progresso em relação ao esquema atual de carta branca, mas é de perguntar por que a destinação de recursos para uma obra em andamento, por exemplo, não deva depender exclusivamente de um projeto de lei.