Título: Desafios regionais na ordem do dia
Autor: U. Sennes, Ricardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/12/2008, Espaço Aberto, p. A2

Os recentes acontecimentos no Equador, em particular aqueles que potencialmente podem atingir o País, estão suscitando um debate sobre as relações do Brasil com os países da América do Sul. Mas é notório como temas de várias ordens se estão sobrepondo, dificultando uma análise mais isenta e estratégica.

As discussões se organizam em torno de duas questões. Uma é sobre a importância do espaço sul-americano para o Brasil. Outra é sobre a forma e as prioridades da atuação do País nesse espaço.

O Brasil sempre teve uma relação ambígua com o continente. Até os anos 1980 predominou um viés bastante negativo. Nossa relação econômica com a região era quase nula e Itaipu, o único empreendimento significativo do País envolvendo um país vizinho. Praticamente não existia comércio. Nossas tarifas com os países da região sofriam uma pequena redução derivada dos acordos da Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Intercâmbio (Aladi), mas eram basicamente as mesmas que o Brasil praticava com os outros países do mundo. Tínhamos baixas conexões logísticas e energéticas.

Foi na grave crise do final dos anos 70 e nos 80 que o País buscou fortalecer alguns laços com os países sul-americanos, começando pela Argentina. Esse processo foi lento e carregado de desconfiança.

Após essa reviravolta histórica, as relações do Brasil com a região se adensaram rápida e substancialmente. A América do Sul passou a representar cerca de 25% de nossas exportações, sendo 90% dos produtos de média e alta intensidade tecnológica. Em setores como máquinas e equipamentos, eletroeletrônicos e farmacêuticos, dentre outros, a região responde por mais de 50% de suas exportações totais. O fornecimento de gás natural pela Bolívia criou um mercado até então inexistente no País. Alguns setores de serviços, como tecnologia da informação, bancos, franquias, engenharia e construção, dentre outros, ampliaram de forma significativa sua presença na região. Consolidou-se também uma agenda de confiança mútua no campo da defesa e da segurança, principalmente entre os países do Cone Sul. Ocorreu também uma importante aproximação entre os mercados financeiros da região, seja via bancos, corretoras ou bolsas de ações, mercadorias e futuros.

Não obstante, apenas alguns poucos temas se estabeleceram na pauta regional brasileira como prioridades, e gozam de um certo consenso na elite brasileira, entre eles a estabilidade política, o acesso preferencial aos mercados da região para produtos e investimentos de empresas brasileiras e a questão energética.

Apesar dessa mudança de patamar na agenda regional, a capacidade do País de estruturar um projeto voltado para garantir maior eficiência e menores riscos a essa crescente interdependência em relação aos seus vizinhos não acompanhou esse progresso. As exceções são, no campo econômico, o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos da Aladi (CCR-Aladi), a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana e alguns instrumentos previstos no Mercosul; e, no campo político, a União das Nações Sul-Americanas e o recém-criado Conselho de Defesa Sul-Americano.

Tanto o Conselho de Defesa, no caso da Bolívia, como o CCR, no caso do Equador, mostraram recentemente sua relevância.

O erro do Brasil não parece ter sido o desenvolvimento de uma agenda regional positiva, dado que os ganhos para o País são evidentes, mas sim sua resistência a estruturar mecanismos que garantam nossos interesses reduzindo ou mitigando riscos próprios da região.

Muitos analistas citam a idiossincrasia regional como argumento para justificar que arranjos políticos não fazem sentido, quando a lógica deveria ser exatamente a inversa. Instituições e fóruns de coordenação são particularmente relevantes quando o ambiente político está sob pressão ou em crise.

Não é de estranhar, portanto, que cada crise política na região acabe sendo direcionada para o Brasil, e não para as instâncias regionais. Como principal ator político regional, o País é chamado - ou mesmo desafiado - a cada evento regional, mesmo quando não está envolvido diretamente, como no caso da papeleira entre Uruguai e Argentina, ou como no caso atual do Equador ante os contratos com o BNDES cursados via CCR. Os anos recentes mostraram como a atuação da diplomacia brasileira no sentido de proclamar um projeto estratégico regional sem o apoio das demais instâncias governamentais não produziu efeitos e, ao contrário, pode significar um risco de gerar expectativas acima da capacidade de resposta do País.

O Brasil apenas muito recentemente passou a perceber a América do Sul como espaço potencial para ganhos, por meio de uma agenda minimamente convergente com seus vizinhos. Desde que o fez o País se beneficiou de inúmeras maneiras, política, econômica e estrategicamente. Hoje o País é visto pelo resto do mundo como pólo dinâmico e confiável de uma região com razoáveis potenciais econômico, energético e ambiental e, simultaneamente, com baixíssimo nível de conflito político.

Essa condição está dada hoje, mas não necessariamente se manterá para sempre. Para consolidar a condição de pólo regional o Brasil - sua elite política e econômica - terá de enfrentar o desafio de definir e negociar com os demais países da região um projeto em que sejam perceptíveis os ganhos de cada parceiro, no curto e no longo prazos.

Os acontecimentos recentes na Bolívia, no Equador e, quem sabe, no Paraguai estão motivando debates políticos acalorados e é benéfico que isso ocorra. Mas a agenda política doméstica não se pode sobrepor a temas de importância estratégica para o País, como é a agenda sul-americana.

Ricardo U. Sennes, economista, doutor em Relações Internacionais (USP), professor da PUC-SP, é sócio diretor da Prospectiva Consultoria Internacional