Título: Não é borboleta
Autor: Kelman, Jerson
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2009, Espaço Aberto, p. A2

Recentemente uma de minhas netas, de 3 anos, presenteou-me com um lindo desenho. No topo da página, alguns garranchos simulando um conhecimento do alfabeto que ela ainda não tem. Perguntei o que estava escrito. Sem titubear, respondeu-me: ¿Não é borboleta.¿ Ri muito e ataquei-a com uma saraivada de beijos.

¿Não é borboleta¿ é um raciocínio gracioso quando desenvolvido por uma criança. Mas perde a graça quando praticado por adultos que, por não entenderem a explicação do que é, exigem uma descrição do que não é.

Em abril de 2008 fui convocado à Polícia Federal para explicar o processo de cálculo tarifário das distribuidoras de eletricidade. Apresentaram-me diversas questões que procuravam caracterizar o que o cálculo não é. Para dar uma ideia, reproduzo apenas uma dessas perguntas: ¿Não considera que o índice aprovado pela Aneel enquanto revisão da tarifa da Celpe (concessionária de Pernambuco) foi, no mínimo, abusivo e/ou indevido?¿

O ¿não¿ no início da pergunta me atrapalhou. Lamentei não ter sido mais aplicado nas aulas de Português do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro). Para não deixar margem a dúvidas, evitei a resposta monossilábica e disse: ¿Não considero que o índice aprovado foi abusivo.¿

Como regulador, estou acostumado a explicar os índices tarifários aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O inédito no caso foi a inserção da explicação nos autos de um inquérito policial. Haveria alguma suspeita de corrupção? Não.

Tratava-se tão-somente de uma investigação sobre a metodologia de cálculo tarifário adotada pela Aneel e sua aplicação no caso da Celpe. Metodologia aprovada pela diretoria colegiada, segundo o que dispõe a lei, em reunião pública, transmitida pela internet, amparada em parecer da Procuradoria Federal e em notas técnicas preparadas por competentes servidores públicos. Não há absolutamente nada nos autos que possa justificar a suspeita de conduta criminosa.

O absurdo inquérito foi iniciado por determinação de integrantes do Ministério Público em Pernambuco, inconformados com a tarifa fixada pela Aneel. Esses procuradores também entraram com ação na Justiça Federal para anular a decisão. Defendiam em 2005 o cancelamento de um contrato assinado em 2001, durante o racionamento de energia elétrica, argumentando que tal contrato se havia tornado desnecessário. Não percebiam que o passado é imprevisível num país que não respeita contratos. Ou seja, não é um bom lugar para se investir. O que significa menor competição entre os empreendedores e, consequentemente, maior remuneração do capital e maior nível tarifário para os consumidores.

O acórdão da 4ª Turma do TRF, que julgou a ação e arquivou o processo no final de 2008, é exemplar. Reconhece a competência da Aneel para exercer o papel para o qual as agências foram criadas: regular e fiscalizar. A iniciativa do Ministério Público, todavia, resultou numa ¿dívida¿ do consumidor com a Celpe. Esta tentou executar a cobrança de uma única vez, no corrente mês de janeiro, mas a Aneel atuou para que fosse parcelada.

Entretanto, ainda resta o espanto: como um tema tão árido - metodologia de cálculo tarifário - se transformou num ¿caso de polícia¿?

Provavelmente, esse fenômeno, que não encontra precedente na literatura especializada, tem origem na legítima insatisfação popular - captada pelo Ministério Público - com o alto custo da eletricidade, particularmente em algumas regiões. É uma lei que define a área de concessão como unidade geográfica para o rateio de custos. Nas metrópoles, onde é possível distribuir grandes quantidades de energia em pequenas áreas, os custos fixos são bastante ¿diluídos¿. Consequentemente a tarifa, em reais/kWh, fica relativamente barata. O contrário ocorre nas áreas de concessão esparsamente povoadas, em geral habitadas por consumidores pobres. Resultado: os pobres tendem a pagar mais pela conta de luz do que os ricos. O contrário do senso comum.

Brasília, por exemplo, com o mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País, tem uma das tarifas mais baixas. Pior: enquanto a conta de luz de uma residência europeia com consumo de 100 kWh por mês não chega a comprometer 1% da renda média, no Maranhão - Estado com IDH baixo - atinge 8%!

O que impede a Aneel de corrigir esta injusta situação? A lei.

Obviamente, a Aneel só pode fazer o que a lei permite e não se pode insurgir contra comandos legais, mesmo que ilógicos. Por exemplo, a conta de luz em geral aumenta quando se faz caridade com o chapéu alheio. No caso, o chapéu do consumidor. É o que ocorre quando um governador isenta o consumidor do pagamento de ICMS, mas mantém o tributo para os insumos adquiridos pela concessionária, ou quando um prefeito cria a ¿taxa do poste¿, ou, ainda, quando é dado desconto a uma classe especial de consumidores, onerando os demais. Nesses e em outros casos, a Aneel pouco pode fazer. Isso porque a lei - neste caso, corretamente - assegura o equilíbrio econômico-financeiro às distribuidoras.

Em poucos dias terminará o meu mandato de diretor-geral da Aneel. Ao longo destes quatro anos, esforcei-me para que ela servisse exemplarmente ao País, tornando-se um modelo de agência reguladora. Penso que fui bem-sucedido, graças principalmente à qualidade do corpo técnico.

Quanto a constrangimentos que enfrentei no exercício do cargo, como o aqui relatado, penso que são os ossos do ofício de quem aceita uma função pública. É necessário, todavia, que alguns membros (felizmente, poucos...) do Ministério Público parem de tentar impor o que pensam a dirigentes públicos, às vezes pela via da intimidação, e se limitem a fiscalizar o cumprimento da lei. Sem esse cuidado será cada vez mais difícil recrutar e manter profissionais honestos, experientes e competentes em cargos de direção na administração pública.

Jerson Kelman é diretor-geral da Aneel