Título: A despedida de um técnico
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/01/2009, Notas & Informações, p. A3

O engenheiro que alertou o presidente Fernando Henrique Cardoso para o risco de racionamento de eletricidade, em 2001, e chamou a atenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para um perigo semelhante, em janeiro de 2008, deixará amanhã o posto de diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), depois de cumprir um mandato de quatro anos. A presença de Jerson Kelman no comando de uma agência reguladora, num governo conhecido por seu empenho em manter esse tipo de organismo subordinado aos interesses políticos do Executivo, já era bastante estranha. Mais estranha seria uma indicação do presidente da República para sua permanência no cargo, em mais um mandato.

Kelman dirigiu no governo tucano a Agência Nacional de Águas (Ana). Nesse cargo, era um dos técnicos em melhores condições para alertar o governo sobre o risco de uma crise de abastecimento de energia. Agiu com discrição, antes da crise. Depois, quando teve de produzir um relatório sobre o apagão, foi bastante claro na exposição dos fatos. A crise não se deveu apenas à estiagem prolongada, mas também à insuficiência de investimentos. Com ou sem chuva, o País vinha rumando para uma situação de escassez de energia. O apagão não resultou apenas de uma decisão divina a respeito das chuvas.

Sua passagem, depois, pela direção da Aneel foi menos confortável. Enfrentou dificuldades não só com o Executivo, mas também com o Ministério Público. Em abril de 2008 foi chamado à Polícia Federal para explicar o cálculo das tarifas cobradas pelas distribuidoras de eletricidade. O episódio foi contado por ele mesmo em artigo publicado sexta-feira passada no Estado. Integrantes do Ministério Público de Pernambuco haviam tentado anular um contrato assinado em 2001, durante o racionamento de energia. Pretendiam, com seu critério, simplesmente romper um contrato, alegando que se havia tornado desnecessário. A história incluiu uma passagem pela polícia e, finalmente, um julgamento pelo Tribunal Regional Federal (TRF), que arquivou o processo em 2008. O acórdão da 4ª Turma do TRF, escreveu Jerson Kelman, é exemplar, porque ¿reconhece a competência da Aneel para exercer o papel para o qual as agências foram criadas: regular e fiscalizar¿.

O bom exercício dessa função, como tem mostrado o funcionamento de agências de outros países, com histórico muito mais longo, requer autonomia operacional e independência em relação aos objetivos políticos do partido no poder. Esse critério foi levado em conta quando a regulação de atividades concedidas foi entregue a agências nos anos 90. Faltou, no entanto, definir legalmente, de modo amplo, o status e o alcance do papel das agências.

Esse trabalho ficou para o governo petista, numa infeliz coincidência histórica. O projeto enviado por Lula ao Congresso continua em tramitação e não consagra na medida necessária o critério da autonomia.

Antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alguns de seus companheiros iniciaram uma campanha contra as agências. O presidente reforçou o coro, logo depois de assumir o posto, reclamando por ser o último a saber de certas decisões. O primeiro conflito importante surgiu no começo de sua gestão, quando o ministro da área tentou enquadrar a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Integrantes do governo Lula sempre mostraram dificuldade para entender a importância de regras estáveis e do respeito a contratos com as concessionárias. O presidente acabou revelando mais sensatez nesse ponto.

Mas o presidente e seus auxiliares nunca deixaram de aparelhar as agências e o fizeram em muitos casos, enfraquecendo organismos importantes para a segurança dos investidores, para o planejamento empresarial de longo prazo e para a tranquilidade dos consumidores.

Jerson Kelman foi uma das exceções, num cenário dominado, cada vez mais, pela presença de ¿companheiros¿ dispostos a agir como subordinados do presidente da República. O risco de apagão em janeiro de 2008 era, segundo Kelman, maior que o de 2001. O desastre não se consumou porque choveu em março - uma ajuda de São Pedro. O Executivo preferiu, enquanto havia risco, evitar a impopularidade de qualquer ação preventiva. Com menos técnicos dispostos a defender convicções, menos preocupações desse tipo haverá no governo.