Título: Rompendo com a doutrina Bush
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2009, Notas & Informações, p. A3

Na presidência Barack Obama, anunciou anteontem a secretária de Estado designada Hillary Clinton, na audiência de confirmação perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, a diplomacia voltará a ser a ¿vanguarda¿ da política externa dos Estados Unidos - e esta se baseará em ¿princípios e pragmatismo, não em rígida ideologia¿. Ainda que se dê o devido desconto ao que as suas palavras possam conter de ¿promessas de campanha¿ ou de demarcação de território no governo que toma posse na próxima terça-feira - afinal, ninguém duvida de que a ex-rival eleitoral do presidente tentará usar a sua função para fazer história -, é inequívoca a ruptura com o supremacismo que marcou traumaticamente a conduta dos EUA na esfera global durante os anos Bush. É mais do que uma mudança de tom.

A tomar pelo valor de face as manifestações da nova titular do Departamento de Estado (o Senado deverá ratificar hoje a sua indicação), muda é a concepção mesma do modo pelo qual os Estados Unidos devem promover os seus interesses e a sua projeção no mundo. A secretária Condoleezza Rice costumava resumir em duas palavras a doutrina que legitimava o primado da hegemonia americana, fazendo tabula rasa das amarras que a comunidade internacional impõe aos seus membros por meio das instituições multilaterais, a começar das Nações Unidas. ¿Power matters¿, o poder conta, dizia ela para justificar a autossuficiência e o unilateralismo das decisões de Washington no campo externo, numa versão algo mais concisa do que a da fábula de La Fontaine (¿A lei do mais forte é sempre a melhor.¿).

O poder em que Hillary pensa é outro. Trata-se do ¿smart power¿, poder inteligente, uma combinação variável conforme as circunstâncias de ¿todas as ferramentas à nossa disposição, diplomáticas, econômicas, militares, políticas, legais e culturais¿. O conceito foi formulado pelo cientista político Joseph Nye, da Universidade Harvard. ¿Os EUA devem conscientizar-se de que não estão sós no mundo, mas precisam assumir a responsabilidade de estar no centro dele¿, argumenta. ¿Liderança e poder estão intimamente relacionados, mas existe mais de uma forma de exercê-los.¿ No limite, é a reformulação da conhecida tática da vara e da cenoura, adaptada às novas realidades mundiais, com a emergência de atores que nem sequer eram cogitados na configuração herdada da guerra fria e sob o impacto do derretimento do sistema financeiro americano.

Armada dessa visão e movida por seu temperamento ambicioso, Hillary vem com tudo, como se diz. ¿O Departamento de Estado vai disparar todos os cilindros para proporcionar uma diplomacia sustentada e voltada para o futuro em cada canto do mundo¿, prometeu. Diante de questões tão diversas como a reconstrução do Iraque e o controle de armas, o órgão que ela passará a comandar tornará a falar de igual para igual com o Pentágono. A secretária indicada não deixou de lembrar que o titular da Defesa, Robert Gates, que continuará no cargo, pediu mais recursos para a diplomacia e propôs ¿um papel mais ativo¿ para o corpo diplomático. Hillary também deixou claro que pretende participar das decisões em matéria econômica, ressaltando que isso terá consequências para as relações dos Estados Unidos com a Rússia.

Talvez não pudesse ser de outra forma, mas a ênfase com que ela descreveu a nova fisionomia da política externa americana - ¿água fresca no deserto¿, saudou o New York Times - contrastou com a generalidade de suas referências às questões da hora. De notar, ainda assim, a alusão a futuros contatos diplomáticos para tentar dissuadir o Irã do seu programa nuclear. Contraditoriamente, porém - e destoando de afirmações de Obama na campanha -, ela reiterou a sua oposição a negociações com o Hamas enquanto o movimento não aceitar Israel (no que imita o Irã). Sobre os horrores em Gaza, Hillary foi mais longe do que Obama até agora, ao destacar os seus ¿trágicos custos humanos¿ - infira-se o que se queira disso para a atuação americana diante do conflito depois da troca de guarda na Casa Branca.

Para o Brasil, ficou o aceno de uma ¿nova aliança energética (com a América Latina), com base em novas tecnologias e fontes de energia renovável¿. Seria irrealista esperar mais.