Título: Avança a fidelidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/12/2008, Notas & Informações, p. A3

O fato de a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, pela unanimidade de seus membros, ter cassado, pela primeira vez, um deputado por infidelidade partidária, poderia nos levar a comemorar o fim de um dos capítulos mais constrangedores - para não dizer vergonhosos - da política contemporânea brasileira. No entanto, tal comemoração seria precipitada porque tramitam no Congresso Nacional projetos que burlam essa moralização imposta pela Justiça, por meio de ¿janelas¿ - períodos em que os parlamentares podem trocar de partido sem risco de perder o mandato. Essa burla já foi apelidada de ¿traição com hora marcada¿.

O acatamento - depois de meses de tergiversações - pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, das determinações da Justiça sobre a cassação do mandato do deputado paraibano Walter Brito Neto, por este ter trocado o DEM pelo PRB em setembro de 2007 - portanto, seis meses após o TSE decidir que os mandatos pertencem aos partidos, e não aos parlamentares -, repõe as coisas no lugar e remove um impasse inteiramente sem sentido. O Supremo decidira, em novembro, manter a resolução do TSE, pela qual os deputados federais, estaduais e os vereadores que mudassem de partido depois de 27 de março de 2007 e os senadores que o fizeram após 16 de outubro do mesmo ano poderiam ser obrigados a devolver os mandatos para os partidos que os elegeram.

Chinaglia demorou três meses para cumprir a determinação do TSE - que lhe dera 24 horas para cassar o deputado ¿infiel¿ e convocar seu suplente -, alegando que só o faria quando todos os recursos judiciais, interpostos pela defesa do deputado acusado, tivessem sido julgados. Foi só quando o Supremo reiterou a deliberação do TSE que o presidente da Câmara convocou reunião da Mesa Diretora - aliás, desnecessária - para, na manhã dessa quinta-feira, cumprir a determinação judicial.

A Resolução do TSE que regula a fidelidade partidária estabelece, em seu artigo 1º, que ¿o partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação sem justa causa¿. Como justa causa são consideradas a incorporação ou fusão de partidos, a criação de novo partido, a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e a grave discriminação pessoal. Vê-se, pois, que a Justiça não impôs nenhuma camisa-de-força à classe política nem pretendeu que esta jurasse fidelidade eterna a seus partidos originais. Pelo contrário, até parecem bem razoáveis os motivos que considerou justos para a desfiliação. Mas é claro que na classe política há quem não se conforme com não ser dono absoluto do mandato que lhe foi confiado pelos eleitores - e daí advém a idéia indecente da ¿janela da traição¿, que se introduz sorrateiramente (ou nem tanto) nos projetos de normatização da fidelidade partidária.

O problema é que os políticos se acostumaram - ou, melhor dizendo, se viciaram - no velho sistema de troca-troca partidário. A cada início de legislatura parlamentares eleitos por um partido passavam para outros. Os partidos governistas eram sempre os ¿receptores¿ - sendo os oposicionistas, em geral, os ¿doadores¿. É claro que nesse processo o que mais se desrespeitava era a vontade dos eleitores, que podiam sufragar um candidato por concordar com os programas defendidos por seu partido - e o viam transferir-se para partidos com programas e princípios exatamente opostos. Conectado à infidelidade partidária galopante, que produzia quantidades de detentores de mandato popular inteiramente diversas das que haviam sido escolhidas pelo eleitorado, estava o velho fisiologismo, pois as adesões aos governos, para engrossar suas ¿bases parlamentares¿, sempre dependeram da contrapartida dos cargos públicos, dos empregos nas estatais ou de outras prebendas típicas da filosofia franciscana do ¿é dando que se recebe¿.

Nada garante que um dia desaparecerá de vez esse velho vício de nossa classe política. De qualquer forma, a primeira cassação de um parlamentar por motivo de infidelidade partidária já nos traz algum alento.