Título: O fim do mundo financeiro que conhecemos ...
Autor: Lewis, Michael; Einhorn, David
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/01/2009, Economia, p. B6

Os americanos ingressam no ano-novo com um estranho novo papel: lunáticos financeiros. Temos sido vistos no mundo em geral com desconfiança e suspeita em outros assuntos, mas em questões de dinheiro, mesmo nossos críticos mais duros têm se inclinado a acreditar que nós sabíamos o que estávamos fazendo. Eles observavam nossos banqueiros de investimento e os imitavam: durante muito tempo, tudo que a metade dos universitários diplomados do planeta parecia querer na vida era um emprego em Wall Street.

Essa é uma razão porque o colapso de nossos sistema financeiro inspirou uma crise de confiança não meramente nacional, mas global. Bom Deus, o mundo parece estar dizendo, se eles não sabem o que estão fazendo com o dinheiro, quem saberá?

Por incrível que pareça, pessoas inteligentes de todo o mundo continuam dispostas a nos emprestar dinheiro e até ouvir nossos conselhos; elas parecem não ter percebido toda a extensão da nossa loucura. Nós temos ao menos uma breve chance de nos curar. Mas primeiro precisamos perguntar: do quê?

Para esse fim, considere-se a curiosa história de Harry Markopolos. Markopolos é um ex-diretor de investimento do Rampart Investment Management em Boston que, durante nove anos, tentou explicar à Securities and Exchange Commission (SEC, equivalente à CVM brasileira) que Bernard L. Madoff só poderia ser uma fraude. O desempenho de investimento de Madoff, dada sua estratégia declarada, não era só improvável, era matematicamente impossível. Portanto, raciocinava Markopolos, Bernard Madoff devia estar fazendo alguma coisa diferente do que dizia que estava.

Em sua carta devastadoramente persuasiva de 17 páginas à SEC, Markopolos viu dois cenários possíveis. No cenário ¿Improvável¿, Madoff, que agia como corretor e também como investidor, estava ¿passando a perna¿ em seus clientes de corretagem. Um cliente poderia entregar um pedido para a Madoff Securities comprar ações da IBM por um certo preço, por exemplo, e a Madoff Securities instantaneamente compraria ações da IBM para seu próprio portfólio antes de executar a ordem do cliente. Se as ações da IBM subissem, Madoff as conservava; se caíssem, ele as empurrava para o pobre cliente.

No cenário ¿Altamente Provável¿, escreveu Markopolos, ¿a Madoff Securities é a maior pirâmide financeira do mundo.¿ O que, como sabemos agora, ela era.

Harry Markopolos enviou seu relatório à SEC em 7 de novembro de 2005, mais de três anos antes de Madoff ser finalmente exposto, mas ele vinha tentando explicar a fraude desde 1999. Ele não tinha nenhum interesse financeiro direto em expor Madoff - não era um investidor infeliz ou um empregado insatisfeito. Não havia maneira de vender ações a descoberto da Madoff Securities, por isso Markopolos não poderia ter ganhado dinheiro com a quebra de Madoff. A julgar por sua carta, Harry Markopolos antecipou principalmente desvantagens para si: ele não quis colocar seu nome nela temendo o que poderia acontecer com ele e sua família, se alguém descobrisse que a havia escrito. E, no entanto, a investigação apressada de Madoff pela SEC o julgou não fraudulento.

O interessante no escândalo Madoff, em retrospecto, é o pouco interesse que pessoas enfronhadas no sistema financeiro tiveram de expô-lo. Não foi somente Harry Markopolos que farejou um rato. Como Markopolos explicou em sua carta, o Goldman Sachs estava se recusando a fazer negócios com Madoff; muitos outros duvidavam dos lucros de Madoff ou supunham que ele estava passando a perna em seus clientes e ficaram longe dele. Nas entrelinhas, Markopolos insinuou que mesmo alguns dos investidores de Madoff podem ter suspeitado de que eles eram beneficiários de um golpe. Afinal, não era difícil ver que o lucro era bom demais para ser verdade. Alguns dos investidores de Madoff podem ter raciocinado que o pior que podia lhes acontecer, se as autoridades pusessem um fim na manobra de antecipação de Madoff, era que uma coisa boa acabaria.

O escândalo Madoff expôs uma ausência mais profunda dentro de nosso sistema financeiro, que vem sendo minado não só por mau comportamento, mas pela falta de inspeções e contrapesos para desencorajá-los. ¿Ganância¿ não funciona como uma explicação satisfatória para a corrente crise financeira. A ganância foi necessária, mas não suficiente; de todo modo, provavelmente vamos eliminar a ganância de nosso caráter nacional, assim como a luxúria e a inveja. O problema solucionável não é a ganância dos poucos, mas os interesses desencontrados de muitos.

Muito foi dito e escrito, por exemplo, sobre os efeitos corruptores das gratificações gigantescas em Wall Street. O que ocorreu dentro das grandes empresas de Wall Street, porém, foi mais profundamente perturbador do que pessoas gananciosas sedentas por cheques polpudos: líderes de sociedades anônimas, especialmente sociedades financeiras, são bons quando chamados a comandar no curto prazo.

Richard Fuld, o ex-presidente executivo do Banco Lehman Brothers, E. Stanley O`Neal, o ex-presidente executivo do Banco Merrill Lynch, e Charles O. Prince III, presidente executivo do Citigroup, podem ter se remunerado com quantias astronômicas no fim de cada ano, em consequência da bonança do mercado de bônus. Mas, se um deles houvesse se colocado como delator - houvesse se levantado e dito ¿esse negócio é irresponsável e não vou participar dele¿ -, ele provavelmente teria sido demitido. Não de imediato, talvez. Mas umas poucas posições de lucros que ficassem atrás das de outras empresas de Wall Street convidaria a indignação de subordinados, que correriam para outras empresas menos responsáveis, e de acionistas, que pediriam sua renúncia. Ele acabaria substituído por alguém disposto a ganhar dinheiro com a bolha de crédito.

Nossa catástrofe financeira, como a pirâmide de Bernard Madoff, requereu toda sorte de pessoas importantes, conectadas, para sacrificar nossos interesses coletivos de longo prazo por ganhos no curto prazo.

A pressão para se fazer isso nos mercados financeiros de hoje é imensa. Obviamente, quanto maior a pressão do mercado para sobressair no curto prazo, maior a necessidade de pressão de fora do mercado para se considerar o longo prazo. Mas esse é o problema: já não há nenhuma pressão séria de fora do mercado.

A tirania do curto prazo se estendeu com uma facilidade assustadora para as entidades que deveriam, de uma maneira ou de outra, disciplinar Wall Street e obrigá-la a considerar seu interesse próprio

As agências de classificação de crédito, por exemplo.

Todos agora sabem que a Moody`s e a Standard & Poor`s fizeram um serviço mal feito nas análises de papéis lastreados por hipotecas de imóveis. Mas seu erro mais caro, que merece muito mais atenção do que recebeu, está em sua área de suposta expertise: dimensionar o risco corporativo.

Nos últimos 20 anos, as instituições financeiras americanas assumiram riscos crescentes com a bênção das autoridades reguladoras sem quase nenhuma manifestação das agências de classificação que, incidentalmente, são pagas pelos emissores de bônus que avaliam. Raramente a Moody`s ou a Standard & Poor`s disseram, se chegaram a dizer: ¿Se vocês colocarem mais um ativo de risco em seu balanço, arcarão com uma degradação séria na sua classificação.¿

American International Group (AIG), Fannie Mae, Freddie Mac, General Electric e as seguradoras de bônus municipais Ambac Financial e MBIA tinham todas classificações triplo A (a GE ainda tem!). Grandes bancos de investimento como Lehman e Merrill Lynch tinham classificações sólidas de grau de investimento. É quase como se, quanto mais alta a classificação de uma instituição financeira, mais propensa ela é a contribuir para a catástrofe financeira. Mas, é claro, todas essas grandes companhias financeiras alimentaram a criação dos produtos de crédito que, por sua vez, alimentaram as receitas de Moody¿s and Standard & Poor¿s.

Esses oligopólios, que são, na verdade, sancionados pela SEC, não foram meramente incompetentes no seu serviço. Eles não perderam simplesmente algumas ligações aqui e ali. Na busca de seus próprios lucros de curto prazo, fizeram exatamente o oposto do que deveriam fazer: ao invés de expor o risco financeiro, eles sistematicamente o disfarçaram.

Esse é um tema que poderia ser explorado com proveito em Washington. Há muitas perguntas que um senador americano consciencioso poderia querer fazer às agências de classificação de crédito. Eis uma delas: Por que vocês permitiram que a MBIA conservasse sua classificação triplo A por tanto tampo? Em 1990, a MBIA estava num negócio relativamente simples de garantir bônus municipais. Ela possuía US$ 931 milhões de capital e apenas US$ 200 milhões em dívidas - uma plausível classificação triplo A.

Em 2006, MBIA havia mergulhado num negócio muito mais arriscado de garantir obrigações de dívidas colateralizadas (CDO, na sigla em inglês). Mas a essa altura ela tinha um capital de US$ 7,2 bilhões, contra uma assustadora dívida de US$ 26,2 bilhões. Isto é, apesar dos riscos garantidos cada vez maiores em seu negócio, ela também assumiu riscos maiores em seu balanço.

As agências de classificação nem piscaram, porém. Em Wall Street, o problema não era nenhum segredo: muitas pessoas compreendiam que a MBIA não merecia ser classificada com triplo A. Já em 2002, um fundo de hedge chamado Gotham Partners publicou um relatório persuasivo, amplamente divulgado, intitulado: ¿MBIA será Triplo A?¿ (A resposta era, obviamente, não.)

Ao mesmo tempo, quase todos acreditavam que as agências classificadoras jamais degradariam a MBIA porque isso não seria do seu próprio interesse financeiro de curto prazo. Uma degradação da MBIA obrigaria as agências a enfrentar o processo caro e embaraçoso de reclassificar dezenas de milhares de créditos com a classificação triplo A simplesmente por causa da garantia da MBIA. Seria como enfiar uma chave inglesa na engrenagem que as enriquecia. (Em junho, finalmente, as agências de classificação degradaram a MBIA, depois que a quebra da MBIA se tornou um segredo tão público que ninguém estava mais ligando para sua classificação formal de crédito.)

Agora a SEC promete novas e modestas medidas para conter os danos que as agências de classificação podem causar - medidas que não enfrentam o problema principal: que os classificadores são pagos pelos emissores. Mas isso não deveria surpreender já que a própria SEC é assolada por incentivos igualmente insanos. Aliás, um dos grandes benefícios sociais do escândalo Madoff pode ser finalmente revelar o que a SEC se tornou.

Criada para proteger investidores contra predadores financeiros, a comissão, de alguma maneira, evoluiu para um mecanismo de proteger predadores financeiros com influência política contra investidores. (A tarefa que ela realizou com tanta diligência durante esta crise foi questionar, intimidar e impor regras sobre os vendedores a descoberto - os únicos jogadores no mercado que têm um incentivo financeiro para expor fraudes e abusos.)

O instinto de evitar paixões políticas no curto prazo é parte do problema; qualquer coisa que a SEC faça para tumultuar os mercados ou reduzir o preço das ações de qualquer companhia, tumultua também as carreiras das pessoas que dirigem a SEC. Assim, ela raramente pune descalabros corporativos e gerenciais sérios - por alguma noção equivocada de que fazer isso causaria a queda dos preços das ações, prejuízos a acionistas e solapamento da confiança. Preservar a confiança, mesmo quando essa confiança é falsa, tem estado quase no topo da agenda da SEC.

Não é difícil perceber por que a SEC se comporta dessa maneira. Se você trabalhasse na divisão de implementação de diretrizes da SEC, provavelmente saberia, no fundo de sua mente, e na frente também, que, se mantiver boas relações com Wall Street, poderá em breve receber somas imensas de dinheiro sendo empregado por ela.

O mais recente diretor de implementação da comissão é o consultor geral do JPMorgan Chase; o diretor que o antecedeu tornou-se consultor geral do Deutsche Bank; e um de seus antecessores se tornou diretor-gerente do Credit Suisse antes de se transferir para o Morgan Stanley. Um observador casual poderia ser perdoado por pensar que a principal razão para conseguir o posto de diretor de implementação de diretrizes da SEC é se posicionar para um cargo mais bem remunerado em Wall Street.

No fim da versão do corajoso estudo de Harry Markopolos que está circulando atualmente, há uma cópia de uma mensagem de e-mail, datada de 2 de abril de 2008, de Markopolos para Jonathan S. Sokobin. Sokobin era então o novo chefe do departamento de avaliação de risco da comissão, um cargo que ficou vago por mais de um ano depois que seu ocupante anterior saiu para - você adivinhou - assumir um emprego mais bem remunerado em Wall Street.

Seja como for, Markopolos claramente esperava que uma cara nova poderia significar um novo ouvido - um ouvido que poderia ser receptivo à verdade. Ele telefonou para Sokobin e em seguida lhe enviou seu estudo. ¿Em anexo está uma pedido de apreciação que fiz à SEC por três vezes em Boston¿, ele escreveu. ¿A cada vez, Boston o enviava a Nova York. Meagan Cheung, a chefe de departamento em Nova York, realmente investigou isso, mas sem obter resultados, que eu saiba. Em minhas conversas com ela, não acreditei que ela tivesse background em matemática e derivativos para compreender as violações.¿

Como isso pôde acontecer? Como pode a pessoa encarregada de avaliar empresas de Wall Street não ter as ferramentas para compreendê-las? A SEC será tão inepta? Talvez, mas o problema no interior da comissão é muito pior - porque pessoas ineptas podem ser substituídas. O problema é sistêmico. O novo diretor de avaliação de risco não era mais inclinado a captar o risco de Bernard Madoff que o antigo diretor de avaliação de risco porque os pensamentos e crenças do novo sujeito eram guiados pelos mesmos incentivos: a necessidade de angariar favor dos politicamente influentes e o desejo de agradar a elite de Wall Street.

E aí está a coisa mais incrível de todas: depois de 18 meses da mais espetacular calamidade financeira provocada pelo homem da experiência moderna, nada foi feito para mudar isso, ou qualquer um dos maus incentivos que nos levaram a isso, aliás.

Digam o que disserem da abordagem da crise financeira pelo nosso governo, não se pode acusá-lo de desperdiçar sua energia sendo consistente ou tentando conquistar o apoio das massas. No último ano, houve pelo menos sete salvamentos diferentes e seis estratégias distintas. E nenhum deles pareceu ter agradado a ninguém, salvo a um punhado de financistas.

Quando o Bear Stearns quebrou, o governo induziu o JPMorgan Chase a comprá-lo oferecendo um preço irresistível e garantindo os ativos mais duvidosos do Bear Stearns. Os detentores de bônus do Bear Stearns foram compensados e seus acionistas perderam a maior parte do seu dinheiro.Aí veio o colapso das entidades patrocinadas pelo governo, Fannie Mae e Freddie Mac, ambas prontamente nacionalizadas. Administrações foram trocadas, acionistas seriamente prejudicados com a diluição de ações, credores deixados intactos, mas com alguma incerteza.

Depois veio o Lehman Brothers, autorizado a pedir concordata, é claro. No princípio, o Departamento do Tesouro e o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) alegaram que permitiram a quebra do Lehman para sinalizar que empresas de Wall Street administradas de maneira imprudente não teriam todas garantia do governo. Mas depois, quando veio o caos e as pessoas começaram a dizer que deixar o Lehman quebrar foi uma coisa estúpida, eles mudaram a história e alegaram que não tinham autoridade legal para salvar a empresa.

Mas aí, alguns dias depois, o AIG quebrou, ou tentou quebrar, mas recebeu a dádiva de viver com enormes empréstimos do governo. Washington Mutual e Wachovia vieram logo em seguida: o primeiro foi abocanhado, sem cerimônia, pelo Tesouro, arrasando tanto credores como acionistas; o segundo foi discutido durante algum tempo. Inicialmente, o Tesouro tentou persuadir o Citigroup a comprá-lo - de novo por um preço irrisório e com a garantia dos ativos podres (o modelo do Bear Stearns). Por fim, o Wachovia foi para o Wells Fargo, depois que o Fisco entrou em cena e adoçou o caldo com um subsídio fiscal.

No meio disso tudo, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, persuadiu o Congresso de que precisava de US$ 700 bilhões para comprar ativos problemáticos de bancos, dizendo que, se não lhe desse o dinheiro, o mercado acionário desmoronaria.

Uma vez entregue o dinheiro, ele abandonou a estratégia prometida e, em vez de comprar ativos por preço de mercado, começou a pagar demais por ações preferenciais dos próprios bancos.

Com isso, ele, basicamente, começou a doar bilhões de dólares ao Citigroup, Morgan Stanley, Goldman Sachs e alguns outros selecionados misteriosamente para sobreviver. O mercado acionário caiu mesmo assim.

É difícil saber o que Paulson estava pensando, pois ele nunca teve que se explicar de fato, ao menos não em público. Mas a ideia geral parece ser que se você der capital aos bancos, estes, por sua vez, o usarão para fazer empréstimos para estimular a economia. Pouco importa que, se você quiser que os bancos façam empréstimos inteligentes e prudentes, provavelmente não deveria dar dinheiro a banqueiros que se afundaram fazendo uma porção de empréstimos estúpidos e imprudentes.

Se você quiser que bancos tornem a emprestar o dinheiro, precisa provê-los não de ações preferenciais, o que é basicamente um empréstimo, mas de capital comum tangível - para que eles possam dar baixa em suas perdas, resolver seus ativos problemáticos e depois começar a fazer novos empréstimos, algo que não conseguirão fazer, a menos que estejam confiantes em seus próprios balanços. Mas, tal como aconteceu, os bancos pegaram dinheiro do contribuinte e sentaram sobre ele.