Título: Limites do dissenso na política externa
Autor: Coutinho, Marcelo
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2009, Espaço Aberto, p. A2

A polarização das discussões em torno da política externa brasileira para a América do Sul dificulta a fixação de consensos mínimos sobre o interesse nacional, fundamentais para que o País possa não só superar a crise provocada pelo Hemisfério Norte, mas, sobretudo, aproveitar as oportunidades então abertas para galgar patamares superiores na reierarquização internacional. O último capítulo dessa batalha ideológica, despertado pelo Equador com a abertura de um processo de contestação de um crédito, contratado no BNDES, na Câmara de Comércio Internacional, em Paris, deve ser analisado à luz do multilateralismo - e não encerrado na esfera bilateral -, na medida em que se relaciona com um importante instrumento de integração e desenvolvimento regional: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Ainda pior do que o desentendimento absoluto entre governo e oposições no Brasil quanto ao projeto internacional do País é a falta de limites ao dissenso também na política adotada pelos países sul-americanos, pois isso nos conduz a uma divisão inoportuna.

Criado no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), ao longo dos anos o CCR tem possibilitado, simultaneamente, o incremento das exportações brasileiras e a integração física e produtiva da região. Todos os países se beneficiam desse acordo de compensação entre os bancos centrais. O Brasil ganha exportando mais seus produtos e serviços intensivos em emprego e tecnologia, enquanto os países pequenos utilizam esse mesmo mecanismo regional para viabilizar seus projetos de infraestrutura, cruciais para o combate sustentável à pobreza e à desigualdade social, principalmente num contexto de crise financeira generalizada, quando o crédito se torna mais escasso.

Baseado na experiência europeia e de inspiração desenvolvimentista, o CCR encaixa-se perfeitamente nos planos dos atuais governos sul-americanos de buscar uma integração autônoma fora dos marcos neoliberais dos anos 1990. Por outro lado, seus bons fundamentos econômicos, financeiros e institucionais conferem ao CCR seriedade e pragmatismo. Um eventual calote do Equador - se possível, pois o CCR tende a impedir que tal decisão seja tomada de forma unilateral por qualquer um dos seus signatários, sendo precisamente essa a vantagem desse mecanismo em termos de garantias mútuas - daria ao governo equatoriano o ônus de prejudicar toda a região, e não apenas o Brasil, tendo em vista que seus custos seriam sistêmicos ou ¿socializados¿, isto é, contaminariam o próprio mecanismo de crédito, do qual todos se favorecem, inclusive, e sobretudo, o que o contesta agora. Sendo assim, mesmo que Rafael Correa viesse a impugnar a dívida com o Brasil, atingiria, na verdade, a América Latina como um todo. Tal ambiguidade tornaria evidentes as contradições ideológicas do seu governo, como falar numa moeda única latino-americana ao mesmo tempo que preserva o dólar como moeda nacional, ou ameaçar o sistema de crédito da Aladi enquanto opta por acordos com o Banco Mundial.

Numa democracia é salutar que a política externa se torne alvo do debate público, acabando com o pretenso monopólio governamental da análise de política externa. No entanto, as críticas cujo propósito é apenas desqualificar o atual governo brasileiro, acusando-o de generosidade ou simpatias ideológicas, costumam desinformar a sociedade, obscurecer a discussão e partidarizar temas sobre os quais deveria haver um mínimo denominador em comum no País, como, por exemplo, no caso do CCR e das relações prioritárias na redondeza, com quem o Brasil vem acumulando sucessivos superávits comerciais de maneira muito pragmática e realista.

Além de compartilharmos irremediavelmente o mesmo território continental, seus potenciais e desafios, o principal destino dos manufaturados e serviços industriais exportados pelo País é a América do Sul, estágio estratégico também do processo de internacionalização das empresas brasileiras. Por isso não nos interessa amplificar os conflitos, agindo de forma imprudente ante as desestabilizações na vizinhança. Em vez de contenciosos com os menores, nosso tamanho e nossa tradição diplomática são fontes de ponderação, flexibilidade e equilíbrio regional. O País está sendo chamado a desempenhar papel de maior destaque e responsabilidade no concerto global das nações, realizando, assim, uma de nossas grandes aspirações nacionais. Mas não alcançará plenamente esse objetivo divorciado da região a que pertence.

O nome do jogo hoje para o Brasil é transformar a crise global em oportunidade para aprofundar a integração sul-americana, conquistar novos espaços internacionais e retomar com mais força o desenvolvimento, agora em moldes sustentáveis. O ano de 2009 poderá constituir-se num ponto de inflexão das relações entre os países, num contexto em que os EUA não exercem mais a mesma influência. Neste momento, a economia brasileira já retomou a oitava posição no ranking mundial, ultrapassando a Espanha e o Canadá e se aproximando da poderosa economia inglesa. Suas parcerias comerciais se diversificaram, conseguindo pouco a pouco descolar interesses na América Latina até então quase exclusivamente centrados no Hemisfério Norte. Em qualquer critério, o Brasil está inserido no seleto grupo de países mais importantes do mundo e, por isso mesmo, não se pode dar ao luxo de tanta divisão doméstica com respeito a sua política externa. O mesmo pode ser dito sobre o relacionamento entre os vizinhos, cujos mercados internos são muito pequenos para enfrentar, isolados, os desafios do pós-Wall Strett. A última coisa que a região precisa para enfrentar a crise externa é enfraquecer um de seus poucos instrumentos de alavancagem e autonomia regional.

Marcelo Coutinho, coordenador do Observatório Político Sul-Americano (Opsa-Iuperj), é autor dos livros Crises Institucionais e Mudança Política na América do Sul e A Agenda Sul-Americana: Mudanças e Desafios no Início do Século XXI (este com Maria Regina Soares de Lima)