Título: Battisti, de assaltante a intelectual injustiçado
Autor: Andrei Netto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/02/2009, Nacional, p. A10

Odiado por seus crimes na Itália, ele é bajulado como mártir na França

Andrei Netto, ROMA

Cesare Battisti é um homem de duas personalidades. A primeira foi vivida na explosiva agitação política da Itália dos anos 70. De assaltante ordinário, passou a foragido condenado à prisão perpétua irrecorrível. Respondeu à Justiça por 36 acusações em um único julgamento em 1988, entre os quais a autoria de dois homicídios e a cumplicidade em outros dois. Em seu país, é descrito como "um assassino em estado puro". Mas também há outro Battisti.

Em Roma e Paris, o Estado entrevistou mais de uma dezena e meia de autoridades de Justiça, ex-comparsas, vítimas, acadêmicos, políticos, amigos e inimigos do ex-militante. Battisti é visto como uma personalidade complexa, situada no limite entre a delinquência, o terrorismo e a reabilitação completa.

Sua primeira personalidade nasceu em 18 de dezembro de 1954, em Sermoneta, cidade ao sul de Roma. "Filho e neto de comunistas", como costuma se apresentar, cresceu junto com a efervescência estudantil e operária na Itália dos anos 60. Jovem assaltante, aos 17 anos foi encarcerado pela primeira vez.

Três anos depois, aos 20, de volta à cadeia por assalto à mão armada, em Udine, conheceu o prisioneiro Arrigo Cavallina. O novo encontro entre ambos se daria em 1978, após uma segunda condenação por assalto.

Em fuga para Verona, pediu abrigo ao amigo. O ex-companheiro de cárcere havia se transformado no idealizador do Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), grupo armado surgido à luz do movimento sindical Autonomia Operária e inspirado nas Brigadas Vermelhas, organização guerrilheira de extrema esquerda.

"Foi minha culpa se Battisti entrou para o PAC. Antes, era um assaltante, um arrombador fanfarrão", descreveu Cavallina ao jornal La Stampa, em 2004. Localizado pelo Estado, o ex-terrorista confesso tenta virar a página, após ter delatado os companheiros ao longo dos anos 80. "Battisti tomou decisões em sua vida, eu tomei as minhas. Ele ainda hoje fala de sua vida pregressa. Eu tento não voltar mais a este assunto."

Com a militância de ambos, os PAC multiplicaram ações em Milão, Turin e Veneza entre 78 e 79. Não eram, então, marcados pela atuação intelectual de vanguarda, nem mesmo por uma identidade ideológica forte. Seus crimes, como ameaças e atentados contra policiais ou agentes penitenciários, se misturavam a assaltos, por vezes sangrentos, apelidados de "expropriações". O fim da organização se deu em 26 junho de 1979, em um apartamento em Milão. Battisti foi flagrado em meio a armas e documentos.

"Nessa época, era ao mesmo tempo um bandido comum e um criminoso político. Foi politizado na prisão, cometeu crimes e está em fuga há 25 anos", define Pietro Forno, juiz de instrução do caso e hoje procurador.

A prisão do militante deu início à montagem de um quebra-cabeças. As primeiras evidências contra Battisti resultaram em uma condenação em 27 de maio de 1981 a 12 anos por formação de quadrilha e posse de armas. A partir de então, ficou mais claro que Battisti era um dos vértices do grupo. "Era um dos mais perigosos, dos piores assassinos envolvidos em casos nos quais eu já trabalhei. Battisti era um assassino em estado puro", entende o procurador do caso, Armando Spataro, coordenador de Contraterrorismo.

O processo, elaborado por Forno e Spataro, se baseia em exames balísticos e em uma dezena de testemunhos, entre os quais vários "arrependidos", como são chamados os beneficiados pela delação premiada. Um deles: Pietro Mutti. "Só após as declarações de Mutti foi possível compreender a importância de Battisti no interior das PAC", diz o texto do processo.

O documento resultou na condenação de 38 por terrorismo. A Battisti são imputados dois homicídios e a cumplicidade em mais dois assassinatos, entre eles o do joalheiro Pierluigi Torregiani, em 1979 (veja quadro nesta página). "Sou testemunha de que Battisti não estava no local. Mas isto não significa que não seja o mandante", disse Alberto, filho do joalheiro, que ficou paraplégico. Com base em novas evidências, voltou a ser julgado em 1988, à revelia, e condenado à prisão perpétua.

As sentenças, contestadas por Battisti, não foram cumpridas por terem sido declaradas quando o ex-militante já havia fugido para a França e, a seguir, o México, onde viveu nos anos 80. Lá, nasceu sua segunda personalidade, marcada pela conduta ilibada e pela atividade intelectual: fundou uma revista, um festival literário, bienais de artes e começou a escrever.

De volta a Paris, em 1990, Battisti tomou contato com a intelectualidade de "esquerda-chic". Tornou-se escritor de relativo sucesso . Em seu exílio francês, por duas vezes, em 1991 e em 2004, foi defendido de pedidos de extradição da Itália por parte da nata intelectual francesa. Na nova demanda de extradição, em 2004, o panorama era outro. A direita estava no poder e a França cedeu. Em 21 de agosto, Battisti declarou não aceitar a decisão francesa. Voltou a fugir. Destino: Brasil.

FRASES

Armando Spataro Ex-procurador

"Era um dos mais perigosos, dos piores assassinos envolvidos em casos nos quais eu já trabalhei. Battisti era um assassino em estado puro"

Pietro Forno Ex-juiz

"Foi politizado na prisão, cometeu crimes e está em fuga há 25 anos"