Título: Irresponsabilidade sem limites
Autor: Souza, Paulo Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/03/2009, Espaço Aberto, p. A2

É inescapável a responsabilidade do governo e especialmente do presidente Lula na crise que assola nossa economia. É evidente que ela começou lá fora, em especial nos Estados Unidos, estendeu-se aos demais países desenvolvidos e atinge hoje todo o mundo. Mas o Brasil poderia estar infinitamente melhor e mais preparado para enfrentá-la se tivéssemos um governo lúcido e um estadista na Presidência disposto a assumir a sua responsabilidade histórica. Em artigos anteriores, neste mesmo espaço, já analisei por que a crise chegou aqui antes e mais intensa do que o esperado, por culpa do governo. Falei do câmbio, da precariedade da situação fiscal e da insegurança transmitida ao mercado pelo discurso e pelas atitudes contraditórias das autoridades.

O primeiro elo da cadeia de transmissão da crise no Brasil foi o câmbio, que deixou o real inacreditavelmente supervalorizado durante vários anos. A responsabilidade do Banco Central nesse particular é evidente. Entretanto, o Banco Central não é independente no Brasil, e essa política em particular teve a aprovação do presidente Lula. O câmbio supervalorizado foi o antídoto brasileiro para evitar que os preços dos produtos básicos - em elevação no mercado internacional - também subissem em reais. A inflação, em especial a dos alimentos, foi mantida em níveis baixos, o que foi muito importante na reeleição do presidente e nos altos índices de popularidade de que ainda hoje desfruta.

As empresas brasileiras, notadamente as exportadoras, fizeram o dever de casa. No longo ciclo de crescimento mundial, estruturaram-se para aproveitar as boas oportunidades. A despeito do câmbio desfavorável, das deficiências de infraestrutura e da elevada carga tributária, conquistaram mercados, produziram mais, geraram milhares e milhares de empregos, auferiram lucros, remuneraram os acionistas e pagaram mais impostos, muitos impostos. O governo, por seu turno, acomodou-se à bonança dos sucessivos recordes de arrecadação e contratou despesas permanentes, que se repetirão por muitos anos, como salários e benefícios previdenciários.

A irresponsabilidade fiscal se traduziu em aumentos desenfreados nos gastos correntes do governo, tanto em pessoal quanto em custeio. Nos últimos cinco anos, as despesas de pessoal saltaram de R$ 98 bilhões para R$ 131 bilhões, os benefícios previdenciários cresceram de R$ 140 bilhões para R$ 200 bilhões e os gastos com o custeio pularam de R$ 95 bilhões para R$ 164 bilhões. Em certo sentido, a gastança exacerbada foi camuflada pela maré favorável da economia, que viveu um céu de brigadeiro até bem pouco tempo, apesar do governo e não por sua responsabilidade.

De repente técnicos do Ministério da Fazenda se deram conta de que, em função da queda da arrecadação federal, não haverá recursos para pagar os reajustes salariais já aprovados e sancionados para 1 milhão de servidores públicos da União. É um caso emblemático da irresponsabilidade sem limites do presidente Lula ao promover a gastança em plena época de crise. A oposição bem que advertiu que era uma insanidade assumir despesas que só em 2009 chegarão à casa dos R$ 22 bilhões, além da despesa realizada em 2007, numa conjuntura em que já se descortinava o desequilíbrio das contas públicas. Juravam, porém, as lideranças do governo no Congresso que não faltaria dinheiro para garantir os reajustes e as novas contratações decorrentes de duas medidas provisórias aprovadas em novembro. Quanto ilusionismo!

A irresponsabilidade de Lula comprometeu até mesmo o equilíbrio orçamentário do governo de seu sucessor, uma vez que as despesas com os reajustes e as novas contratações se estenderão muito além de 2011, num total de R$ 35 bilhões anuais acima das despesas de 2007. Estamos, portanto, diante de um problema criado pelo Palácio do Planalto, que não quer assumir a responsabilidade de desatar o nó. Se fosse dotado de bom senso, o presidente adiaria tais reajustes, como a lei permite e como aconselham membros de sua equipe econômica. Mas Lula e Dilma Rousseff se opõem a tal adiamento. Eles não querem criar nenhum abalo nas suas relações umbilicais com as corporações do funcionalismo, que fazem parte de sua base de sustentação e que já avisaram que irão à guerra, ou à greve, se o Palácio do Planalto não honrar o compromisso assumido.

O presidente pode não ter um projeto nacional para o enfrentamento da crise, mas tem um projeto de continuidade de poder, que passa pela eleição de sua predileta, a quem pretende entregar o trono presidencial. Focado nas próximas eleições, ele não quer problemas para a sua candidata, sobretudo com as corporações dos servidores públicos, uma espécie de "eleitorado cativo" do lulopetismo. Não tenham dúvidas: o lobby dos funcionários falará mais alto, porque conta com interlocução direta com o presidente e tem sua representação parlamentar por meio do PT. Se tiver de optar entre os reclamos dos servidores e o equilíbrio das contas públicas, Lula ficará com os primeiros, ainda que isso seja de uma irresponsabilidade a toda prova.

Com o advento da crise, caiu a máscara e ficou patente o quanto o governo foi perdulário em seus gastos. Enquanto as empresas se capitalizaram e dispõem de mecanismos de ajuste, ainda que dolorosos, o governo amarrou as próprias mãos e agora Lula maldiz a sorte e clama para que os países ricos "resolvam a crise que criaram". Para ele é mais fácil culpar os outros que assumir suas responsabilidades e tomar as medidas amargas que as crises exigem dos grandes estadistas. Infelizmente, a fatura do desatino presidencial será paga não por quem o cometeu, mas por todos os brasileiros.

Paulo Renato Souza, deputado federal por São Paulo, foi ministro da Educação no governo FHC, reitor da Unicamp e secretário de Educação no governo Montoro. E-mail: dep.paulorenatosouza@camara.gov.br. Site: www.paulorenatosouza.com.br