Título: São iniciativas injustas e imorais
Autor: Leite, Fabiane; Iwasso, Simone
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/03/2009, Vida&, p. A28

Dirceu Raposo de Mello: diretor-presidente da Anvisa; para dirigente, ações que ofertam benefícios mediante fornecimento de dados de pacientes devem ser proibidas no Brasil

Fabiane leite

Programas de benefícios criam uma situação ética limítrofe, geram diferenciação entre as pessoas, podem ser vistos como propaganda e coletam dados que podem ser usados em pesquisa clínica. A análise é do diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Dirceu Raposo de Mello, que quer a proibição dessas práticas.

Qual a análise da Anvisa sobre esses programas?

Esse tipo de ação é injusta. Ao fidelizar o médico, a empresa não fideliza todos os médicos. Se ela pode descontar 50%, porque não estende para todos e não só aqueles de consultórios particulares? Eles estão criando um privilégio para uma determinada classe. Estou dizendo que todo cidadão tem de ser tratado de forma igualitária pela indústria privada. Não pode ter nenhum preconceito.

O desconto poderia ocorrer em compras governamentais?

Claro. A questão ainda não foi regulamentada, estamos demandando isso porque entendemos que pode caracterizar abuso econômico. Mas há a questão do comportamento ético, da falta de compromisso com a sociedade como um todo, privilegiando alguns.

Desde quando isso chama atenção da agência?

Essa prática começa a ser recorrente em 2005.

Seria uma resposta ao crescimento do mercado de genéricos?

Essa questão infelizmente é puramente comercial. Disputa de mercado, busca de fidelização a determinada marca, até porque muitas vezes não há alternativas genéricas. Acho que deve ser exigido que o médico pense nessa situação. Ele é o elo da cadeia. Isso só ocorre porque médicos aceitam. Se eles tivessem atitude mais crítica, isso não ocorreria.

Isso também não poderia encarecer os produtos nas prateleiras?

Essa é a questão. A resposta não temos. Mas há outra questão ainda: quando o médico dá o cartão (de descontos), ele é o agente, mas o cartão tem de ser validado, e para ter direito ao benefício, o usuário "paga", via informações. São dados pessoais seus, que podem ser sobre a evolução da sua doença e que podem ser usados para efeitos de pesquisa clínica. Quando você vai fazer uma pesquisa e usar dados da pessoa, você tem de, obrigatoriamente, pela legislação, ter o termo de consentimento livre. O que preocupa é quando o indivíduo preenche, em tese, o consenso esclarecido pelo telefone. Não é antiético, é imoral. Se não dou os dados, não tem desconto. Sem desconto, não compro. Se não comprar, não posso me tratar.

Há um programa de um remédio fornecido pelo governo em que uma enfermeira pode ir até a casa do paciente para ensinar a usá-lo, mas ela coleta dados do paciente.

Se a enfermeira for independentemente de ele dar os dados, tudo bem.

Não, os pacientes precisam fornecer seus dados.

Do ponto de vista bioético é absolutamente recriminável. Em países em desenvolvimento, em que 60% a 70% da população não tem como adquirir medicamento, precisar se sujeitar a entrar em pesquisa é inadmissível.

Os programas configurariam também uma propaganda? Apesar de não trazerem o nome, fornecem revistas de orientação, folders sobre como usar uma bombinha para asma, por exemplo, em que há desenhos da bombinha.

São situações limítrofes. A indústria faz isso durante um período, exaure a discussão, aí cria outra estratégia. Mas o paciente pode denunciar que ele quer o desconto sem ter de dar dados. Está protegido pela Resolução 196 (do Conselho Nacional de Saúde). E eu propus a proibição. Ou o desconto é para todos, ou não dá desconto.