Título: Da repressão à democratização
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/03/2009, Espaço Aberto, p. A2

Há 30 anos revogava-se o Ato Institucional nº 5, editado em dezembro de 1968, pelo qual se instaurou um regime repressor limitativo de direitos e garantias individuais, como o habeas-corpus, com a outorga de poderes excepcionais ao Poder Executivo. O Congresso Nacional foi fechado, deputados foram cassados e ministros do Supremo Tribunal Federal, aposentados compulsoriamente. Os juízes deixaram de ser vitalícios e inamovíveis. Todos os atos praticados de acordo com o ato institucional estavam excluídos de apreciação judicial.

A imprensa e as manifestações culturais foram submetidas à censura. Em recesso forçado do Congresso, o poder de legislar passou a ser atribuição exclusiva do Executivo, até mesmo para emendar a Constituição, como o fizeram os ministros militares, a troika cabocla que governou o País durante um ano e editou, em 1969, a Emenda Constitucional nº 1, alterando a Constituição de 1967.

Por esta emenda outorgada, consolidou-se o sistema autoritário, com a concentração do poder no Conselho de Segurança Nacional, ao qual competia, como órgão de mais alto nível de assessoria do presidente, estabelecer os objetivos nacionais permanentes e as bases da política nacional, tendo por dirigente executivo o chefe da Casa Militar da Presidência.

Não houve ditador, mas nem por isso deixou de haver ditadura, exercida pelo sistema militar. Foi editada draconiana Lei de Segurança Nacional. Além de estar vedado o habeas-corpus, autorizou-se o militar presidente do inquérito policial a decretar a prisão temporária do suspeito por 60 dias, bem como se cominaram penas de morte, prisão perpétua e banimento.

Os advogados passaram a sofrer arbitrariedades, inclusive prisão, como ocorreu com um dos principais defensores de presos políticos, o intimorato José Carlos Dias. Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), José Cavalcanti Neves, de forma incisiva, fez reclamos contra os abusos sofridos pelos advogados.

Iniciava-se a luta em prol da redemocratização, travada por entidades da sociedade civil sensíveis aos valores democráticos, como a Associação Brasileira de Imprensa, a OAB, a Associação dos Advogados de São Paulo, a Associação Brasileira de Educação, a Igreja Católica, pelas Comissões de Justiça e Paz. Alguns sindicalistas e próceres políticos da oposição, mesmo mais diretamente ameaçados de punição, exigiam a eliminação do arbítrio.

Os advogados incomodavam o sistema. Tentou-se garroteá-los pela submissão da OAB ao Ministério do Trabalho, como determinou o Decreto nº 74.000, de 1974, jamais tornado eficaz pela resistência da OAB, que reuniu pareceres no sentido da sua inconstitucionalidade. Essa tentativa de subordinação da OAB foi afrontada com coragem pelo então presidente da Ordem, José Ribeiro de Castro Filho, que no mesmo ano presidiu a V Conferência Nacional dos Advogados, cujo tema central foi Os direitos do homem e os advogados.

José Ribeiro de Castro Filho, em discurso inaugural da conferência, dizia compreender que um processo revolucionário vitorioso adote providências excepcionais, mas era inadmissível "que se transformem em presenças permanentes que passam a ameaçar os direitos fundamentais da pessoa humana". Vibrante a comunicação de Heleno Cláudio Fragoso ao concluir ser exigência inadiável a revogação do Ato Institucional nº 5, bem como a cessação da censura à imprensa.

A vitória da oposição, com a eleição de 14 senadores em outubro de 1974, sinalizou que o povo não mais se comovia com a propaganda do Brasil grande, do "ame-o ou deixe-o" do presidente Médici. Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel, engendrou a estratégia da "democracia possível", com a abertura política "lenta, gradual e segura" - a chamada distensão: processo pelo qual se concediam liberdades, mas com criação de salvaguardas assecuratórias da manutenção do poder pelo sistema militar.

A repressão nos porões da ditadura, contudo, continuava. Houve, por exemplo, a prisão e morte do jornalista Vladimir Herzog e do sindicalista Manoel Fiel Filho. Geisel contrariou-se com os fatos, mas em abril de 1977 fechou o Congresso e emendou a Constituição para modificar a composição do colégio eleitoral e criar a figura do senador biônico, eleito indiretamente, visando à vitória de Figueiredo para a Presidência.

Em agosto daquele ano, no pátio da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, exigiu-se, na Carta aos Brasileiros, o "Estado de Direito já".

Em maio de 1978 houve a VII Conferência Nacional da OAB, comandada pelo atilado intérprete do Brasil Raymundo Faoro, que vislumbrava a abertura política como um processo. Faoro, no seu discurso, afirmou: "Estamos diante da transição inevitável e estamos diante da luz da manhã, a incerta, a penosa manhã de esperanças e de malogros prováveis"...

A delegação paulista - que eu integrava - fez rejeitar a tese de Oscar Dias Corrêa a favor de um gradualismo com a adoção de medidas de emergência excepcionais para garantia da democracia.

Faoro estava certo, nós, os mais moços também, mas afoitos, queríamos tudo já: habeas-corpus, constituinte, anistia. Veio a abertura gradual: para viger em 1º de janeiro de 1979, editou Geisel a Emenda Constitucional nº 11, pela qual se revogava o ato institucional, mas se criavam o estado de emergência e a medida de emergência, dando-se poderes excepcionais ao Executivo em situações de crise.

A anistia veio em meados de 1979. Governadores de oposição foram eleitos em 1982, porém malogrou a emenda da eleição direta em 1984. Tancredo foi eleito em janeiro de 1985. Elaborou-se a nova Constituição. Foi um longo processo. Resta ainda construir a democracia como o regime da moralidade administrativa e política e do exercício consciente da cidadania. Será outro longo processo.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça