Título: Corregedoria judicial para polícia é necessária?
Autor: Recondo, Felipe; Almeida, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2009, Nacional, p. A10

O Estado Democrático de Direito se assenta sobre dois pilares: regime representativo da vontade popular e sistema de garantias jurídicas contra a intervenção abusiva do Estado na esfera individual. Neste, ocupa lugar de destaque o conjunto de garantias do investigado, do acusado e do condenado. Isso não é singularidade nossa, mas vem das primeiras emendas à Constituição dos Estados Unidos, da declaração dos direitos do homem da Revolução Francesa, chegando até a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, subscrita pelo Brasil.

O titular desses direitos individuais é o ser humano, seja ele alto ou baixo, honesto ou desonesto, cumpridor da lei ou criminoso. Existe um refrão fascista segundo o qual "os direitos humanos são para os humanos direitos" ou que só protegem "homens de bem", não se admitindo a quem viola a Lei a condição de invocá-la em seu benefício. Há, sim, homens de bem que são investigados, acusados ou condenados. E entre os alvos da persecução estatal, como distinguir entre quem é e quem não é? E a ação declaratória de que alguém não é homem de bem teria que abrir espaço ao direito de defesa (sim, ninguém pode lhe dizer que você não é um homem de bem sem dar-lhe oportunidade de defesa). Melhor, portanto, respeitar os direitos de todos.

Não se discute que o combate à criminalidade cabe ao Poder Executivo, por intermédio da polícia, e do Ministério Público, titular que é da ação penal. Ocorre que esse combate fatalmente há de colidir com os direitos individuais que mencionamos. Tampouco é de estranhar que na linha de frente dessa luta, pela própria natureza da atividade que se combate, haja excessos. É preciso que o Estado disponha de um órgão isento e independente para ter condições de arbitrar esse conflito e limitar os excessos: é do Poder Judiciário, pois, que estamos falando.

A polícia está sempre sujeita à atuação correcional da magistratura. No Estado de São Paulo, desde tempos imemoriais, há juiz corregedor da Polícia Judiciária, sem suscitar surpresa alguma. Absurdo é que não haja similaridade na Polícia Federal. O controle externo pelo Poder Judiciário é essencial à atividade repressiva, e pode concorrer decisivamente para evitar abusos, garantindo a licitude e, por vezes, o sucesso da investigação.

A proposta do ministro Gilmar Mendes só merece aplausos. Ainda que dependa de emenda constitucional, deve ser vista não como enfraquecimento dos poderes do Ministério Público, mas como fortalecimento do Estado Democrático de Direito, que tem na sua essência o respeito ao direito de defesa.

* Advogada, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa-IDDD, coordenadora e professora do curso de especialização em Direito Penal Econômico da FGV-SP

NÃO: Wagner Gonçalves *

A Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério Público o controle externo da atividade policial. Exerce-o mediante medidas extrajudiciais e judiciais previstas em lei e em ato normativo do Conselho Nacional do MP. Esse trabalho vem sendo feito pelos Ministérios Públicos, em todos os níveis. Utilizam-se de inspeções nas delegacias (e departamentos) e de procedimentos investigatórios, muitos deles resultando em ações penais. Assim, não se pode falar na criação de uma "corregedoria judicial de polícia", como sugeriu o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, para "controlar eventuais abusos da polícia", sem chamar para o debate - e conhecer os trabalhos desenvolvidos e as dificuldades - o procurador-geral da República e os demais ramos do Ministério Público.

Além disso, é ínsito ao Poder Judiciário fazer o controle da legalidade nos inquéritos e nos processos. Ele não é órgão agente, fora do âmbito da jurisdição, para o controle prévio de atos administrativos.

O controle é feito também pelos órgãos internos (corregedorias das polícias), e, nos casos mais graves, pelos próprios serviços de contrainformação, que têm possibilitado o afastamento de maus policiais.

Tudo isso, aliado ao controle externo exercido pelo Ministério Público, é suficiente? Não! Mas controlar a polícia é difícil em qualquer lugar do mundo. Contudo, ao invés de se criar outro órgão, de constitucionalidade duvidosa, por que não aparelhar e aperfeiçoar os que já existem? Não se pode, a cada escândalo pautado pela imprensa, gerar maior sensação de insegurança jurídica. De outro lado, há bons e maus policiais e tenho certeza de que os primeiros querem transparência e não são contrários ao controle externo.

O grande debate não está no Judiciário ou no Executivo, mas no Congresso Nacional. São mais de 22 propostas de emendas constitucionais ampliando os poderes da polícia ou restringindo os do MP. Cria-se a figura do delegado-geral da República, com iniciativa de lei, status de ministro etc. Os delegados passam a ser agentes políticos com as garantias da magistratura. Queremos uma polícia independente do Executivo e com poderes hipertrofiados?

A questão levantada pelo do presidente do STF merece debate mais amplo.

* Subprocurador-geral da República e coordenador da 2ª Câmara Criminal e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal

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