Título: Equipe que fez aborto em menina de 9 anos e a mãe são excomungadas
Autor: Lacerda, Angela
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2009, Vida&, p. A18

Garota tinha sido estuprada pelo padrasto; por interferência de arcebispo, ela teve de ser transferida de hospital

Angela Lacerda, RECIFE

Depois do aborto a que foi submetida uma menina de 9 anos estuprada pelo padrasto e grávida de gêmeos, toda a equipe médica que participou do procedimento e a mãe da criança, que o autorizou, foram excomungadas da Igreja Católica. O anúncio da excomunhão, feito pelo arcebispo de Olinda e Recife, d. José Cardoso Sobrinho, provocou polêmica. Dois ministros de Estado fizeram críticas à atitude do religioso. José Gomes Temporão, titular da Saúde, considerou a excomunhão "lamentável". Carlos Minc, do Meio Ambiente, declarou que estava "revoltado".

Profissionais de saúde que viraram alvo da sanção eclesiástica disseram ontem que não estão arrependidos. "Graças a Deus estou no rol dos excomungados", disse a diretora do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), Fátima Maia. Católica, ela disse ter agido como diretora de um instituto de referência no Estado para atendimento à mulher vítima de violência sexual, mas pessoalmente também não tem nenhum arrependimento. "Abomino a violência e teria feito tudo novamente. O Cisam fez e vai continuar fazendo, estamos qualificados para esse tipo de atendimento há 16 anos."

Católico de batismo, não praticante, o gerente médico do Cisam, Sérgio Cabral, um dos que participaram da interrupção da gravidez de 15 semanas da criança, frisou não ter nenhum problema de consciência. "Estou cumprindo um trabalho perante a população pobre de Pernambuco que só tem o Sistema Único de Saúde para resolver seus problemas." O médico preferiu não comentar a excomunhão da Igreja.

Coordenadora do Grupo Curumim, uma ONG que trabalha com reprodução feminina e integra o Fórum de Mulheres de Pernambuco, Paula Viana criticou abertamente o arcebispo. "Assusta achar que a vida de uma menina vale menos que o pensamento de um religioso fundamentalista", disse. "Todos os procedimentos foram feitos com base na lei", lembrou, referindo-se ao estupro e ao risco de vida que a menina corria pela imaturidade de seu aparelho reprodutivo. De acordo com a diretora do Cisam, a criança poderia ter ruptura de útero, hemorragia e bebês prematuros, além de risco de diabete, hipertensão, eclâmpsia e de se tornar estéril.

A gravidez da menina, que mora em Alagoinha (227 km do Recife), foi descoberta no último dia 25. Ela sentia dores na barriga, tonturas e enjoos e foi levada pela mãe, de 39 anos, a uma clínica na cidade vizinha de Pesqueira. No dia seguinte, o padrasto, de 23 anos, foi preso após confessar que abusava da menina havia três anos e também tinha estuprado a irmã mais velha, de 14 anos, que tem deficiência física. A menina foi levada para o Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), na capital, onde seria submetida ao aborto. D. José interveio, falou com a direção e conseguiu que o instituto suspendesse o procedimento. A paciente foi então transferida para o Cisam.

Há dois anos, d. José gerou polêmica ao tratar da distribuição da pílula do dia seguinte no carnaval, alegando que o método é abortivo, e não contraceptivo. A arquidiocese pediu a suspensão da distribuição, mas não teve sucesso.

RIO GRANDE DO SUL

Uma menina de 11 anos grávida do pai adotivo está internada em um hospital em Tenente Portela (RS). A gestação completou 7 meses. A polícia pediu a prisão preventiva do pai adotivo, um pedreiro de 51 anos.

COLABORARAM SOLANGE SPIGLIATTI E LÍGIA FORMENTI

REPERCUSSÃO

D. José Cardoso Arcebispo do Recife

"O padrasto cometeu um delito gravíssimo, mas, de acordo com o Direito Canônico, não é passível de excomunhão automática. O aborto é mais grave ainda"

José Gomes Temporão Ministro da Saúde

"Está na lei. Em caso de risco de vida da gestante ou gravidez resultado de estupro, o aborto pode ser permitido. O resto é opinião da Igreja"

Carlos Minc Ministro do Meio Ambiente

"Essa menina já teve um trauma grande. A Igreja, em vez de ajudar, criou uma questão a mais. É a criminalização da vítima"

Fátima Maia Diretora do Centro de Saúde

"Graças a Deus estou no rol dos excomungados"

D. Antônio Dias Duarte Bispo auxiliar do Rio

"A Igreja é tão misericordiosa que a excomunhão não se aplica a quem afirmar que não conhecia essa lei do Direito Canônico"

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO X CÓDIGO PENAL

O que diz o Direito Canônico

Quem provoca aborto incorre em excomunhão automática, não podendo receber sacramentos (eucaristia e crisma, por exemplo) até a sanção ser levantada

Bispos têm autoridade para retirar a excomunhão. Em muitas dioceses, padres também podem A mulher poderá não incorrer em excomunhão por se encontrar em situações atenuantes - ser criança, estar sob forte perturbação emocional, atuar sob coação ou desconhecimento não culpável da gravidade do ato

A Igreja Católica incluiu o aborto provocado no rol dos pecados que implicam excomunhão automática por entender que é um crime contra a vida especialmente grave, pois atenta contra um ser humano indefeso

O que diz o Código Penal

Não pune o aborto praticado por médico em caso de risco de vida para a mãe ou estupro