Título: A tragicomédia da guerra fiscal
Autor: Maciel, Everardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2009, Economia, p. B2

A guerra fiscal é um tema que, nas últimas décadas, tem frequentado a agenda tributária brasileira. Provoca homéricas controvérsias e nenhuma solução.

O ICM (hoje ICMS), quando instituído pela Reforma Tributária de 1966, exibia como virtude não só a de secundar a iniciativa francesa de tributar o consumo pelo regime do valor agregado, mas a de fulminar a guerra fiscal que se dizia existir no âmbito do vigente Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC). Presumia-se que, por adotar sistemática de créditos e débitos, ele iria inibir a guerra fiscal, pela vigilância que as Unidades Federadas (UF) exerceriam umas sobre outras.

A Constituição de 1967 previa alíquota única para o ICM. Essa virtude (hoje tão reclamada) restava prejudicada, pela possibilidade de redução da base de cálculo - forma um tanto cínica de burlar o dispositivo constitucional. Redução de base de cálculo e outros meios para diferenciar o tratamento tributário ficavam, contudo, condicionados à celebração de convênios entre as UF.

Em janeiro de 1975, entrou em vigor a Lei Complementar nº 24, que disciplinou concessão e revogação de incentivos fiscais no âmbito daquele imposto. São regras severíssimas. A concessão só poderia ocorrer se autorizada pela unanimidade dos secretários de Fazenda. A revogação exigia quórum de 4/5. Incentivos concedidos em desacordo com as normas resultariam na exigibilidade do imposto não pago, ineficiência do crédito no estabelecimento recebedor da mercadoria, presunção de irregularidade na prestação de contas do governador, a juízo do Tribunal de Contas da União (TCU), e outras sanções.

Durante os governos militares e nos anos subsequentes, a legislação disciplinadora dos incentivos foi observada integralmente. Logo após a promulgação da Constituição de 1988, começaram a surgir leis estaduais que, de forma oblíqua ou ostensiva, passaram a ofender francamente a Lei Complementar nº 24.

A guerra fiscal passou a desconhecer limites. Aberrações como o passeio de notas fiscais ensejaram incentivos para a atividade atacadista. Chegamos ao cúmulo de oferecer incentivos à importação por alguns portos, em detrimento da produção doméstica. Esta modalidade de guerra fiscal reproduz o que ocorria, até pouco antes do fim dos anos 90, com o IPI. As tradings manipulavam preços de automóveis importados, de sorte que o IPI apurado na revenda pelas montadoras era 30% inferior ao devido pelos automóveis nacionais. A solução foi incluir as próprias montadoras como contribuintes do IPI, no caso de automóveis por elas importados.

Incentivos fiscais não são necessariamente ilegais. Guerra fiscal consiste em outorgá-los sem suporte legal. Por que persistem as ilegalidades? Porque há uma condescendência geral com práticas nocivas. O TCU jamais exerceu a competência que lhe foi conferida, há mais de 30 anos, pelo parágrafo único do art. 8º da Lei Complementar nº 24. O Ministério Público, na condição de fiscal da lei, salvo singulares iniciativas, não se dispõe a tratar da questão. O Judiciário dispensa indiferença e morosidade às raras demandas. Os governos dos Estados prejudicados acomodam sua indignação na conveniência política. Nada se faz e todos protestam. Talvez seja um caso clássico de hipocrisia coletiva.

Fez bem o governo de São Paulo quando passou a glosar créditos, constituídos ilegalmente de mercadorias importadas por portos de outros Estados e destinadas a contribuintes localizados em seu território. É uma reação legítima contra a guerra fiscal. É também uma denúncia contra práticas que atentam contra o interesse nacional, favorecendo exportadores domiciliados no exterior. O emprego e a renda dos nacionais agradecem.

Paralelamente aos embates da guerra fiscal, o Congresso está a examinar o substitutivo da PEC nº 233, por alguns denominada "reforma tributária". Pretende-se acabar com a guerra fiscal de forma curiosa. Seria adotado um arremedo do princípio do destino, que consiste em reduzir a zero as alíquotas interestaduais do ICMS (no caso específico, a proposta é reduzir para 2%). Alega-se que os Estados perderiam interesse em conceder benefícios fiscais, porque não haveria como efetivar transferências significativas de crédito para outras UF.

Tal alegoria não considera que essa proposição produz efeitos perversos: aumenta a propensão a sonegar, pela enorme diferença entre a alíquota interna e a interestadual, e impõe importantes perdas fiscais para os Estados exportadores líquidos. Para sonegação, argumentam com a nota fiscal eletrônica; para as perdas, alegam a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER). Admitir que a nota fiscal eletrônica acabará com a sonegação é zombar da inteligência dos fraudadores e dos especialistas. Já o FER, cuja fonte de financiamento é desconhecida, não faria mais que instituir a Bolsa ICMS, aumentando a dependência financeira dos Estados à União.

Guerra fiscal, na verdade, é produto da falta de observância da lei. Por que os Estados não rediscutem o conteúdo e os indispensáveis aperfeiçoamentos na Lei Complementar nº 24, em lugar de assistir a enfadonhos e torpes debates sobre emendas constitucionais no Congresso?

*Everardo Maciel, consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)