Título: Aborto justificado
Autor: Reale Júnior, Miguel
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2009, Espaço Aberto, p. A2

violência doméstica, especialmente a sexual, tem se revelado uma constante no cotidiano da vida brasileira, independentemente da classe social dos envolvidos. Exemplo dessa violência foi o estupro sofrido por menina de 9 anos, violada por seu padrasto, que ficou grávida de gêmeos.

Os médicos do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Recife, devidamente autorizados pela mãe da menor, realizaram o aborto dos fetos gêmeos fecundados no ato de violência.

O fato ganhou indevida publicidade por obra dos representantes da Igreja Católica, caso contrário teria sido mais um aborto legal, realizado em circunstâncias legitimadas pelo Código Penal.

A menina residia no município de Alagoinha, cujo bispo interferiu para que o aborto não se realizasse. Com a transferência da garota para o Recife, onde seria realizada a operação de cessação da gravidez, foi acionado o arcebispo de Olinda, Dom José Carlos Sobrinho, que passou um dia todo - das sete da manhã às dez da noite - tentando convencer a família a desistir do aborto. Aí o fato ganhou notoriedade, para infelicidade da família e da menina.

Pretendia-se ter uma mártir, ganhou-se uma estigmatizada, cujo drama cresceu geometricamente seja pela pressão imposta pelo arcebispo, seja pela publicidade dada a uma tragédia de cunho especialmente particular, revestida de amargor por todos os lados. A divulgação da excomunhão da mãe e da equipe médica motivou ampla divulgação do acontecido. Foi lamentável a violação da intimidade e da vida privada e, fundamentalmente, da dignidade de uma criança merecedora da proteção integral em vista do livre desenvolvimento de sua personalidade.

A excomunhão automática, que desconsidera as circunstâncias concretas e por isso mesmo é automática, foi anunciada com tranquilidade pelo arcebispo como aplicável à mãe, autorizadora do aborto, e a todos os membros da equipe médica que realizou a operação.

Criou-se um clima de comoção com a pena de exclusão dos sacramentos, a meio caminho do inferno eterno. No Brasil e no exterior a imprensa e mesmo integrantes da Igreja manifestaram sua contrariedade ao rigor da posição do alto prelado de Pernambuco.

A reação foi tamanha que depois o próprio Vaticano, por meio do arcebispo Rino Fisichella, presidente da Pontifícia Academia para a vida, criticou não só a forma pública da excomunhão, como ressaltou que, "antes de pensar na excomunhão, era necessário e urgente salvaguardar a vida inocente da menina de 9 anos estuprada pelo padrasto". Para o arcebispo da cúria vaticana era preciso olhar além da esfera jurídica canônica.

Se o Direito Canônico não apresenta justificativa às hipóteses de aborto em caso de necessidade de salvação da gestante ou na hipótese da gravidez resultar de estupro, reclamando o arcebispo da cúria vaticana que se olhe além da esfera jurídica, o nosso Código Penal de 1940 já previa, há 60 anos, essas causas de justificação do aborto.

Dispõe no art. 128 do Código Penal que não constitui crime o aborto praticado por médico "se não há outro meio de salvar a vida da gestante" ou "se a gravidez resulta de estupro" e há consentimento do representante da gestante incapaz.

No caso, as duas hipóteses se somam. Uma menina de 9 anos, fisicamente ainda mal formada, carregando no útero dois fetos, corria graves riscos de vida, bem como os fetos, sendo, segundo os médicos, aconselhável a interrupção da gravidez para salvaguarda da gestante.

Poder-se-ia argumentar, como o fazem certos setores da Igreja, que é de exigir o sacrifício da vida da mãe para preservar o feto. Há que se ponderar, contudo, que no sopesamento de bens, a vida da gestante vale mais do que a do bebê em gestação. Se o feto tem vida, vida que se revela a partir da fecundação, no entanto, ainda não se apresentou ao mundo como pessoa reconhecível, como objeto particular de estima no seu modo de ser, no olhar, no sorriso, sem possuir a importância afetiva e social de alguém que é filha, esposa, namorada, amiga, conhecida, tal como sucede com a gestante.

Imolar a gestante em perigo de vida para que morra em favor do feto é desconhecer que restam sem aquela mulher eventuais outros filhos ou o companheiro e a própria sociedade na qual é vista como pessoa digna de sobreviver em benefício dos que lhe são próximos e de todos.

Por outro lado, mesmo o conservador Código Penal de 1940 justificava o aborto em caso de estupro, pois a mulher violada estaria a reviver a brutalidade sofrida ao vislumbrar o bebê a que deveria devotar o sentimento mais belo da maternidade. O milagre doce da vida se transmudaria no horror trágico da violência a ser rememorada a cada sorriso do filho, que traz a marca da cara do estuprador. A lembrança do instante do estupro pode acompanhar os instantes ternos do amamentar.

Submeter uma mulher que já sofreu a violação a viver a angústia desses sentimentos contraditórios numa maternidade em que se misturam amor e ódio, medo e paixão, seria uma impiedade sem nome.

Por isso o Vaticano diz ser preciso ir além da esfera jurídica, da esfera dos cânones, para ir à vida em toda sua riqueza de sentimentos, bons e maus. O Direito não é, contudo, nem pode ser distante da vida. O Direito é drama, pois não existe para figurar abstratamente na lógica e sistemática dos códigos. O Direito pode tentar simplificar o concreto, mas só existe se é eficaz ao ser aplicado à vida com observância de todas as suas contingências e com sensibilidade para todos os seus percalços, em busca do justo.

E não há caso em que mais sofridamente se enfrentem as carências humanas, os vícios, as maldades e a mais firme necessidade de atender aos sentimentos de piedade e de respeito à dignidade da pessoa do que neste, no qual se fez legalmente um aborto justificado.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça