Título: Guerra fiscal contra o Brasil
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2009, Espaço Aberto, p. A2

A guerra fiscal envolve os Estados e sua principal arma são incentivos fiscais e financeiros na cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O alegado objetivo é atrair novos empreendimentos para Estados que os concedem, ou beneficiar os já existentes. Os pretextos são vários, entre eles o desenvolvimento econômico estadual e a geração local de empregos.

Em condições pacíficas incentivos poderiam ser concedidos se atendessem aos requisitos legais, no caso, a Lei Complementar (LC) nº 24, de 1975, em particular a aprovação unânime dos secretários de Fazenda estaduais reunidos no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Em condições bélicas, essa lei é flagrantemente desrespeitada, e fica por isso mesmo. Neste jornal, na segunda-feira (página B2), o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, consultor tributário de notório conhecimento, escreveu que "... há uma condescendência geral com práticas nocivas. O Tribunal de Contas da União não exerce a competência que lhe foi conferida, há mais de 30 anos, pelo parágrafo único do art. 8º da LC nº 24. O Ministério Público, na condição de fiscal da lei, salvo singulares iniciativas, não se dispõe a tratar da questão. O Judiciário dispensa indiferença e morosidade às raras demandas. (...) Talvez seja um caso clássico de hipocrisia coletiva."

Outro aspecto que me chamou a atenção é uma arma que recentemente passou a proliferar de forma crescente em alguns Estados, no mesmo artigo assim descrita: "Chegamos ao cúmulo de oferecer incentivos à importação por alguns portos, em detrimento da produção doméstica." Esse assunto também foi abordado pelo colunista Raymundo Costa, do jornal Valor (9/4, página A8).

Há Estados que importam por portos alheios, inclusive porque não têm os seus. Neste caso, a lei - ora, a lei - diz que o ICMS cabe a esses outros Estados, pois se trata apenas de uma passagem da mercadoria naquele onde ocorre a importação.

Nessa guerra há forças que se destacam. Por exemplo, o Espírito Santo (ES) é antigo guerreiro das artes fiscais. Há tempos mantém um programa, o Fundo para o Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), que para atrair empreendimentos importadores lhes cobra apenas a alíquota interestadual de 12% e financia 8%, ou seja, dois terços desse ICMS, quando a mercadoria sai para outros Estados. Isso com carência de cinco anos e amortização em 20, a juros de 1% ao ano, sem correção monetária. Depois, a Secretaria da Fazenda estadual ainda pode leiloar essa dívida com lance mínimo de 15% do saldo devedor. Com tanto incentivo à importação, coisa de mãe para filho, é também enorme o estímulo para desenvolver atividades portuárias em outros países, como a China e a Coreia.

Há Estados que adotaram prática mais simples, mas igualmente danosa. Por exemplo, há quem recolha de importadores, inclusive de outros Estados, um ICMS de apenas 3%. Contudo, ao levar a mercadoria para além da fronteira estadual, o importador procura atravessá-la, com a bênção do Estado de onde sai, como se houvesse recolhido a alíquota interestadual de 12%. Tecnicamente, essa bênção é chamada de crédito presumido de ICMS. Ora, isso dá ao Estado destinatário um enorme trabalho, nem sempre bem-sucedido, como é comum nessa guerra, de colocar sua infantaria de fiscais a cercar tais importações e autuar seus praticantes cobrando-lhes a diferença de 9%, mais a multa cabível. O emprego no Estado onde primeiro entra a importação costuma ser invocado como motivação, mas programas desse tipo devem ser muito aplaudidos por trabalhadores de países longínquos, como esses do Sudeste Asiático.

Enquanto os Estados se engalfinham em antigas e novas práticas, um aspecto que não vi realçado é que os benefícios de ICMS a importadores equivalem a uma redução do imposto federal de importação. Assim, há Estados que, na prática, usurpam o que é uma competência legislativa da União, pois o artigo 22, IX, da Constituição federal lhe dá essa competência em caráter exclusivo. Aliás, isso vale também para o comércio interestadual, mas a guerra fiscal demonstra que parte da LC federal sobre as regras do ICMS entre Estados não pegou. Não é à toa que se diz que no Brasil as leis são como vacinas: umas pegam; outras, não.

O governo federal - nos seus três Poderes - precisa acordar para o problema e dar fim a essa guerra que prejudica o País, pois esses incentivos à importação reduzem aqui a atividade produtiva e o emprego, beneficiando outras nações. O ministro da Fazenda, que é também presidente do Confaz, deveria assumir o papel que lhe cabe, impedindo que alguns Estados ajam à revelia do órgão que preside. Outro que se deveria mexer é o ministro da Indústria e Comércio Exterior, pois a guerra fiscal chegou também ao seu terreiro.

A imprensa também poderia dar maior cobertura a esse campo de batalhas da guerra fiscal, a qual já passou de um ponto a que não deveria ter chegado e agora ameaça generalizar-se. Com a adesão de outros, vários Estados poderão prosseguir nesse ataque a interesses nacionais. É coisa fácil de fazer e localmente rentável, pois se arrecada algum ICMS, e há os que têm o cuidado de proteger a produção local, como faz o ES ao excluir do seu Fundap produtos como mármores, granitos e café. Também não será surpresa se Estados perdedores acabarem aderindo a essa prática contrária à indústria e ao emprego no Brasil.

Portanto, com esse uso do ICMS para incentivar a importação, a guerra é também de Estados contra os trabalhadores, o País e o governo federal. Será que este vai continuar agindo como se o problema não fosse com ele, praticando a hipocrisia coletiva apontada por Everardo Maciel?

Roberto Macedo, economista (USP e Harvard), professor associado à Faap, é vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo