Título: A nau dos insensatos
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2009, Nacional, p. A6
O Congresso tem recursos de comunicação suficientes para se defender de todas as acusações que lhe são feitas. São quatro emissoras de rádio e televisão, sítios na internet, boletins impressos, mais a prerrogativa de convocação de rede nacional.
Portanto, nada impede o Poder Legislativo de "dialogar com a sociedade", como propõe o deputado Ciro Gomes, passando ao largo da "plutocracia e da mídia".
Se não o fez até agora, ao se completarem exatos 80 dias de escândalos ininterruptos, foi porque não quis, não pôde ou não soube fazê-lo de forma organizada, civilizada e, sobretudo, convincente.
Seja qual for o motivo, fato é que o Parlamento se manifesta de maneira cada vez mais desorganizada, refutável e, nas últimas 48 horas, com variações entre a demência e a selvageria.
Fenômeno diverso do ocorrido no Supremo Tribunal Federal, onde os nervos, os temperamentos, os complexos e as vaidades levam magistrados a abrir mão da compostura. Como se o fato de o Judiciário ter sido obrigado, pelos desmandos gerais, a se manifestar além dos "autos" autorizasse também os ministros a liberar em público desavenças pessoais na forma de insultos.
No Legislativo, assistimos à perda da razão coletiva. Em ambos os sentidos: do juízo e do argumento.
A reação à mínima restrição no uso das passagens aéreas suscitou um triste espetáculo de desequilíbrio mental e emocional. Os fatos falam por eles mesmos há 80 dias sem que tenha sido tomada uma única providência eficaz e objetiva contra o abuso nas cotas de telefones, na contratação de funcionários fantasmas, no pagamento irregular de auxílios-moradia, na devolução de horas extras pagas no recesso, na extinção de diretorias inúteis, no nepotismo cruzado; nem mesmo se dá notícia sobre o andamento do processo contra o ex-corregedor Edmar Moreira, por gasto irregular da verba indenizatória.
Esses fatos criaram pernas próprias, caminham sozinhos e descontrolados na proporção direta em que os parlamentares perdem a cabeça. Um perigo, pois nessa batida a população acaba acrescentando à má imagem do Legislativo o diagnóstico de insanidade.
Falam-se as maiores barbaridades a título de defesa do Parlamento sem que seus autores percebam o efeito nefasto dessa autoflagelação à deriva.
Alguém, em sã consciência, pode concordar com deputado Silvio Costa quando ele vê risco de dissolução de casamentos porque mulheres e filhos não podem usar as cotas de passagens dos parlamentares para viajar?
E o líder do DEM na Câmara, deputado ACM Neto, vociferando que a imprensa "quer fechar o Congresso"? Irreconhecível.
Fernando Gabeira, em sua autocrítica da tribuna por também ter dado passagens à família, acusou a imprensa de retaliar porque o Legislativo não abastece os veículos de comunicação com verbas publicitárias. Escorregou na contradição.
Se as denúncias são fruto de vingança vil - "aqui é possível criticar sem que se seja ameaçado de perder anúncios" -, não têm fundamento. Neste caso, a que "luta" se refere o deputado quando se diz disposto a conduzir uma batalha pela moralização e modernização do Legislativo?
O senador Epitácio Cafeteira exorbita e vê na cobrança por limites na distribuição de passagens de avião um sinal de que "daqui a pouco" os parlamentares serão obrigados a viajar de ônibus, mediante cotas de "vale-transporte".
Ciro Gomes, então, rompeu de vez relações com as estribeiras porque na listagem de bilhetes apareceu uma pessoa de nome Maria e sobrenome Gomes, citada "possivelmente" como a mãe do deputado. Ele nega. Perfeito.
Bastaria, pois a notícia não afirmava o parentesco. Não precisaria insultar a tudo e a todos com palavrões que, ditos nas dependências do Congresso em altíssimo som, desmoralizam ainda mais a instituição.
No tempo devido, o Legislativo não ouviu os alertas de que caminhava para o abismo. Insistiu e agora grita. Não por medo de ser fechado, mas por anseio de calar a crítica.