Título: O Mercosul vai se preservar
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2009, Economia, p. B7

Apesar dos problemas, vale a pena apostar no bloco, bem como nas relações com China e Índia, diz o embaixador

Ariel Palacios

O embaixador José Botafogo Gonçalves é um dos diplomatas brasileiros que mais acumularam experiência nas duras negociações comerciais que o País enfrentou desde os anos 90. Botafogo foi ministro de Indústria, Comércio e Turismo, secretário executivo da Camex e embaixador especial para Assuntos do Mercosul. Como embaixador em Buenos Aires, entre 2002 e 2004, viveu de perto a crise econômica que assolou o país vizinho. Atualmente, Botafogo Gonçalves é o presidente do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Em entrevista por telefone, o embaixador Botafogo Gonçalves disse ao Estado que, apesar dos circunstanciais problemas, o Mercosul vale a pena. Além disso, disse que o Brasil deve pensar as relações com China e Índia a longo prazo.

Desde o fim do ano passado, o governo da presidente Cristina Kirchner, a pedido dos industriais argentinos, aplicou várias barreiras à entrada de produtos importados. Embora as barreiras apliquem-se a todos os países, afetam principalmente o Brasil, principal sócio da Argentina no Mercosul.

Esse assunto de restrições ao comércio não é privilégio da Argentina. O Brasil também já aplicou restrições não-tarifárias, houve problemas de cotas. Na agenda do Mercosul, há uma história de limites à liberdade de comércio. É uma das falhas do bloco, que ainda não conseguiu realizar 100% seu projeto de livre-comércio regional, embora, do ponto de vista geral, o comércio no Mercosul é um sucesso, pois é de US$ 30 bilhões, quando antes não passava de US$ 5 bilhões.

Apesar dos problemas constantes nos setores sensíveis, a relação com a Argentina vale a pena?

O nível de relacionamento é hoje muito intenso. Existe grande crescimento no setor dos investimentos das indústrias brasileiras na Argentina. Além disso, o país tem significativo consumo de produtos brasileiros. No mercado argentino, o Brasil consegue até competir com produtos da China. Além disso, as relações financeiras são intensas. E mesmo no setor agropecuário, por exemplo, vemos os casos de vários frigoríficos que atualmente estão em mãos brasileiras na Argentina. Tudo isso faz com que as relações entre os dois países não sejam resolvidas apenas pelo aspecto comercial de uma série de produtos, os chamados produtos sensíveis. Mas, ainda que seja compreensível essa atitude, falta, em ambos lados, uma visão integracionista.

Nos últimos tempos, o Brasil e a Argentina não estão agindo de forma muito coordenada nos fóruns internacionais.

Na época em que eu estava no governo, o Mercosul falava com uma só voz, tinha representação unificada. Mas, no caso da OMC, jamais os quatro países aceitaram falar com uma única voz. O bloco jamais se fez presente em Genebra. Cada um fala por sua conta.

Como o Brasil deveria encarar a relação cada vez mais importante com China e Índia?

As relações com a China e a Índia devem ser vistas a longo prazo. Isso ainda não foi decidido no Brasil. Há uma crescente discussão, muitas vezes atada ao curto prazo. Quando se fala em China, as pessoas logo pensam em invasão de produtos chineses. Não se pensa a longo prazo.

É preferível concluir a Rodada Doha de uma vez por todas, mesmo que de forma modesta?

Uma solução modesta não seria a resposta correta. Vontade política existe ou não. Não há meia vontade política, como não há mulher ligeiramente grávida. Não adianta fazer um acordo modesto. Não adianta fingir um acordo. É preciso barrar o protecionismo.

O G-20 poder ser uma solução permanente, como fórum de decisões internacionais?

O G-20 tem uma perspectiva interessante. Veja que há uma proliferação de "Gs". É que o mundo está se reestruturando. Não dá para organizar o mundo ao redor dos grupos de antes. Por isso, os Brics (grupo que reúne o Brasil, Rússia, Índia e China) ocuparão cada vez mais espaço.

Como evoluirá a integração comercial do Brasil com o resto da América do Sul?

O teatro das operações da diplomacia brasileira no século 21 será a América do Sul. O crescimento da economia do Brasil se intensificará mais ainda. Mesmo que a integração seja exasperadamente lenta, o Mercosul é uma unidade que vai se preservar. E os dois países associados ao Mercosul, o Chile e a Bolívia, vão gravitar ao redor do Mercosul. No caso da Venezuela, enquanto estiver a política bolivariana de Hugo Chávez, as coisas serão complicadas. O Brasil não tem nada de anti-Venezuela. Mas é o presidente Hugo Chávez que tem uma política anti-integração. Ele é quem não quer saber nada de mercado.

Os governos mudam, mas os países permanecem.

Sim. Chávez quer entrar em um clube, o Mercosul. Mas, para entrar em um clube, é preciso aceitar as regras.