Título: Testando os limites da dívida pública :: Rogério L. Furquim Werneck
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2009, Economia, p. B2

O editorial de sábado, 25/4, alertava o governo para a importância de não perder a confiança de seus credores. "A disposição do mercado para refinanciar a dívida pública pode desaparecer de repente, se quem investe em títulos começar a duvidar do compromisso do governo com a redução do déficit ou de sua real capacidade de reduzi-lo. Antes que seja tarde, o governo deve se antecipar e evitar que prosperem dúvidas perigosas que acabem confirmadas pelos fatos. Manter a confiança do mercado exige plausibilidade: o governo deve deixar de lado seu apego a projeções excessivamente otimistas. Deve também tentar evitar se ver na situação de ter de rolar grande parte da dívida em um dado momento."

São advertências bem conhecidas por quem quer que tenha acompanhado o debate em torno da condução da política fiscal e da gestão da dívida pública no Brasil ao longo das duas últimas décadas. O que torna a passagem digna de nota, contudo, é que o governo que está sendo advertido não tem sede em Brasília, mas em Londres. Trata-se de editorial do Financial Times sobre a alarmante deterioração das contas públicas britânicas.

O mais preocupante, no entanto, é que as dificuldades britânicas compõem apenas uma pequena parte de um mosaico bem mais amplo e complexo de rápida decomposição do quadro fiscal nas economias desenvolvidas. As causas dessa decomposição são claras, ainda que a importância relativa de cada uma delas varie de economia para economia: gastos gigantescos com operações de resgate do sistema financeiro, adoção de políticas de estímulo fiscal e a própria queda do nível de atividade, que, de um lado, implica perda de arrecadação e, de outro, ampliação de dispêndios deflagrados por estabilizadores automáticos, como seguro-desemprego.

Projeções recentes feitas pelo Fundo Monetário Internacional no seu Perspectivas da Economia Mundial de abril não deixam margem a dúvidas sobre a gravidade da deterioração do quadro fiscal que vem tendo lugar nas economias desenvolvidas. O que se prevê é que, entre 2007 e 2010, a dívida pública bruta, como porcentagem do PIB, salte de 63% para 97%, nos Estados Unidos; de 64% para 87%, na Alemanha; de 64% para 80%, na França; de 44% para 73%, no Reino Unido; e de 188% para 227%, no Japão. Projeções para um período mais longo apontam para um ciclo de endividamento persistente. Como porcentagem do PIB, a dívida pública em 2014 atingiria 107% nos Estados Unidos, 91% na Alemanha, 90% na França, 88% no Reino Unido e 234% no Japão.

É bom ter em conta que, por preocupantes que já sejam, tais previsões parecem estar baseadas em premissas um tanto otimistas sobre os determinantes da dinâmica da dívida pública nesses diversos países. Pelo menos é o que sugerem comparações preliminares com resultados de exercícios de projeção independentes, feitos por outras instituições.

Ainda é difícil vislumbrar com nitidez os possíveis desdobramentos desse novo e vigoroso ciclo de endividamento público que está em curso nas economias desenvolvidas. Mas uma acumulação de dívida de tais proporções poderá restringir em boa medida as possibilidades de crescimento da economia mundial do outro lado da crise. Elevação tão rápida e concomitante das necessidades de financiamento do setor público em economias desse porte certamente contribuirá para que as taxas de juros pós-crise sejam bem mais altas do que poderiam ser num quadro fiscal mais consolidado. Taxas de juros mais elevadas tenderão a tornar mais adversa a dinâmica da dívida pública e exigir geração de superávits primários ainda mais vultosos nos países desenvolvidos. Isso significa aumento ainda maior de carga tributária e esforço redobrado de corte de gastos primários, com provável penalização assimétrica do investimento público. Nada disso contribui para ampliar as possibilidades de crescimento da economia mundial. Muito pelo contrário.

Por último, é bom não esquecer os problemas fiscais estruturais com que se debatiam as economias desenvolvidas antes da crise atual. Problemas relacionados às dificuldades de financiamento da expansão de gastos previdenciários e com saúde decorrentes do envelhecimento da população. O rápido aumento de endividamento público que vem sendo agora observado deverá tornar ainda mais difícil um equacionamento adequado dessas questões.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio