Título: As incertezas que rondam a gripe suína
Autor: Leite, Fabiane
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2009, Vida&, p. A20

Organização Mundial da Saúde (OMS) tem caminhado na corda bamba. Ao mesmo tempo em que tenta alertar para a possibilidade real de uma pandemia, tem o dever de evitar o pânico. Os epidemiologistas da OMS sabem que os mil casos confirmados no primeiro mês não são suficientes para estimar a seriedade da epidemia.

Principalmente quando se trata de um vírus novo como o H1N1. Na pandemia de 1918 a maior parte das mortes foi causada pela segunda leva de casos, que surgiu meses depois do primeiro surto. O que sabemos é que na melhor das hipóteses o atual surto não será muito diferente do que vem ocorrendo nas últimas décadas, quando a cada ano uma nova cepa do vírus provoca cerca de 100 mil mortes ao redor do planeta.

Mas na pior das hipóteses a pandemia pode ser comparável à gripe espanhola de 1918, que matou quase 8% da população mundial. Teremos que aguardar os resultados das próximas semanas ou meses para conhecermos nosso inimigo, mas vai depender de os governos continuarem a divulgar abertamente o que ocorre nos países.

Por agora vale a pena entender as limitações dos dados epidemiológicos coletados neste primeiro mês e como eles se relacionam com os da pandemia de 1918.

Quatro fatores são importantes para estimar a gravidade de uma pandemia de gripe. A taxa de letalidade, a fração das pessoas infectadas que necessitam de internação hospitalar, a velocidade com que o vírus se espalha e o número de pessoas infectadas no primeiro ano. Infelizmente nos primeiros meses de uma epidemia tudo conspira para impedir que os números sejam estimados com precisão.

Para obter a taxa de letalidade, é preciso saber o número de mortes causadas pelo vírus e o de pessoas infectadas. No início da epidemia, o número de mortes é difícil de determinar. Como a doença é pouco conhecida, muitas mortes inicialmente atribuídas ao vírus podem ter outras causas. Por outro lado, em locais com sistema de saúde precário, um número grande de mortes pode deixar de ser reportado. No caso do H1N1, a inexistência de um teste simples capaz de identificar o vírus atrasa a obtenção de dado confiável.

A maioria dos países ainda não é capaz de executar os testes em larga escala, o que provoca um acúmulo de casos suspeitos que mascaram as estatísticas (é o caso do Brasil). Se o número de mortes já é difícil de estabelecer, o de pessoas infectadas é ainda mais difícil, uma vez que sequer o período de incubação é bem conhecido. Existe ainda a possibilidade de o vírus ser relativamente brando e um número grande de pessoas infectadas se curar sem saber que foram infectadas. Como estas pessoas não são incluídas nas estatísticas, a taxa de letalidade pode ser superestimada.

Um exemplo deste tipo de problema é que em meados de abril foi divulgado que no México havia 2 mil casos e 200 mortes, o que corresponde a uma taxa de letalidade de 10%, número próximo ao observado em 1918. Duas semanas depois, em 5 de maio, os números globais confirmados por testes de laboratório eram de 30 mortes e 1.516 casos - mortalidade de 1,9%, ainda extremamente alta.

No mesmo dia nos EUA havia 403 casos confirmados e uma morte (taxa de 0,25%). Taxas desta magnitude ainda são muito altas. Como a população do planeta é de 6,7 bilhões de pessoas, se 1 em cada 3 pessoas for infectada, significa que morreriam 5 milhões de pessoas.

Conhecer a fração dos doentes que necessita de tratamento hospitalar é importante pois determina o risco de o sistema de saúde colapsar. Se o número for alto, existe o risco de não haver leitos suficientes durante o pico do número de casos, o que pode aumentar a letalidade (em 1918, metade dos 40 milhões de óbitos ocorreu em 10 semanas). Ainda estamos longe de saber a fração dos doentes que necessitam de internação hospitalar, mas, à medida que os médicos aprendem como tratar a infecção, a taxa de internações pode ser gradativamente reduzida.

A velocidade com que o vírus se espalha também é difícil de determinar. O fato de terem aparecido focos pequenos em muitos países, cobrindo uma grande área geográfica, pode dar a falsa impressão de que a doença se espalha muito facilmente. Na verdade, o que ocorreu é que viajantes aéreos levaram o vírus para um número grande de cidades.

Nas próximas semanas vamos saber com que velocidade os focos vão crescer, o que deve permitir uma melhor ideia da velocidade de propagação da doença nas metrópoles. Com este dado será possível determinar em quanto tempo o H1N1 terá infectado uma fração significativa da população mundial.

Se existe uma lição a ser aprendida com a gripe de 1918, é que o descaso com que os primeiros focos foram tratados, a falta de ações coordenadas e a tentativa de diversos governos de ocultar ou minimizar o problema à época contribuíram para aumentar o número de mortes.

*Biólogo - fernando@reinach.com

Mais informações sobre a pandemia de 1918 podem ser encontradas no livro de John M. Barry, The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History. Penguim Books, 2005