Título: Chávez no Mercosul - vale arriscar?
Autor: Kuntz, Rolf
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2009, Economia, p. B2

Há um defeito grave na discussão sobre o ingresso da Venezuela no Mercosul. O ponto politicamente mais importante é quase sempre esquecido e isso prejudica a avaliação de riscos e benefícios. O Mercosul não é apenas um sistema de preferências comerciais nem uma zona de livre comércio. Não se trata, portanto, apenas de admitir ou rejeitar um sócio num clube de integração comercial. O bloco formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai é uma união aduaneira. Uma associação desse tipo é caracterizada não só pela adoção de uma Tarifa Externa Comum (TEC), mas também por certas obrigações e limitações políticas. Nenhum de seus membros pode negociar isoladamente um acordo de livre comércio. Toda negociação desse tipo - com a União Europeia, com os EUA, com o Burundi ou qualquer outro parceiro - é necessariamente uma ação conjunta e requer a concordância de todos os sócios.

Isso vale tanto para uma negociação bilateral quanto para um empreendimento mais amplo, como a Rodada Doha ou o fracassado projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). É preciso articular interesses não só na hora de cobrar concessões, mas também no momento de elaborar ofertas. Esse exercício já tem sido muito difícil no Mercosul formado por quatro sócios. Brasileiros e argentinos têm divergido quando se trata de oferecer acesso a seus mercados de produtos industriais. Isso ocorreu tanto nas conversações bilaterais com os europeus quanto nas discussões da rodada global.

Também a vida no interior do bloco tem sido complicada. As perfurações da TEC talvez sejam a questão menos grave. Ao lado disso, permanece o desafio de eliminar a tributação múltipla, nos casos de produtos importados de fora do bloco por um país e transferidos a outros. Imaginou-se poder liquidar esse problema durante a presidência brasileira do bloco, mas não foi possível. Outro problema importante e sem solução à vista é o status do comércio de veículos e componentes. O bloco deveria ter liberalizado esse comércio há muito tempo, mas o prazo tem sido repetidamente esticado. Além de tudo, há múltiplas barreiras ao comércio entre os países do bloco e os obstáculos têm apenas aumentado. Em resumo, nem como zona de livre comércio o Mercosul funciona adequadamente.

Mas o bloco foi concebido para fins mais ambiciosos que a mera formação de um amplo mercado regional. O Mercosul deveria ser uma plataforma de inserção de seus sócios na economia global. A integração entre os quatro países, por meio do comércio intrabloco, da troca de investimentos e da criação de cadeias produtivas, deveria proporcionar escala e condições técnicas para uma produção competitiva em todos os mercados. A convergência de interesses deveria facilitar a ação conjunta e a criação de um ator importante na conformação da economia global.

O objetivo da inserção internacional nunca foi buscado com suficiente vigor. O bloco se envolveu em poucas negociações ambiciosas e quase sempre a articulação de interesses foi deficiente. Não houve harmonia nem mesmo na eleição do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), quando um candidato brasileiro e um uruguaio foram apresentados. Pouco depois, o governo brasileiro apresentou um candidato à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sem apoio de seus vizinhos.

Esses desacertos diplomáticos são superáveis e hoje são raramente lembrados, pelo menos em voz alta. Mas o bloco permanece emperrado em sua integração econômica e incapaz de se articular para negociações de grande alcance. Há quem defenda o retorno do Mercosul à condição de área de livre comércio. Os governos poderiam se concentrar na solução dos problemas comerciais do bloco e cada um seria livre para negociar acordos com quem quisesse.

Se o Mercosul já funciona mal nas condições atuais, como ficará se as suas decisões passarem a depender também do voto do presidente Hugo Chávez e, portanto, ficarem sujeitas aos critérios políticos da Alba, a Alternativa Bolivariana para a América Latina? Discutir se o presidente Chávez é ou não um candidato a ditador é perda de tempo neste momento. Há uma questão preliminar: vale a pena acrescentar os objetivos políticos do presidente venezuelano às já complicadas condições da união aduaneira? Todos os demais argumentos perdem relevância enquanto não se dá uma resposta clara a essa pergunta. Admitir Chávez no Mercosul (e não uma Venezuela abstrata) é admitir sua participação na diplomacia econômica do Brasil. É essa a escolha.

*Rolf Kuntz é jornalista