Título: A escolha errada do Brasil
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2009, Notas & Informações, p. A3

O chanceler Celso Amorim confirmou domingo, na Arábia Saudita, que o Brasil continuará a apoiar a candidatura do ex-ministro egípcio da Cultura Farouk Hosny, à direção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), mesmo que o brasileiro Márcio Barbosa, atual diretor-geral adjunto da entidade, se lance candidato por outro país, o que pensa fazer, como afirmou na semana passada a este jornal. A alegação do titular do Itamaraty para preterir Barbosa, depois de ter negado apoio ao senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque, que também aspirava ao cargo, é que "agora é a vez dos árabes". O Brasil, segundo disse Amorim em recente audiência no Congresso, fez a "opção geopolítica" de se aproximar dos países árabes e africanos que "apoiam a candidatura egípcia".

Na realidade, nem os árabes e africanos estão fechados com Hosny, como quer fazer crer o ministro, nem, muito menos, a sua vitória está assegurada no pleito marcado para outubro. Isso ainda não é o principal. Embora seja incomum, um governo pode preferir um estrangeiro para um alto posto em um organismo multilateral se a candidatura nacional tiver escasso respaldo, se a preferência trouxer ganhos estratégicos palpáveis para o país e se o estrangeiro for um nome respeitado no cenário internacional. Nada disso é verdadeiro no presente caso. Na Unesco, em primeiro lugar, o trabalho do engenheiro Márcio Barbosa, que já dirigiu o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é amplamente reconhecido, sobretudo por suas ações em favor da diversidade cultural - uma dimensão da atividade desse organismo das Nações Unidas, cara à grande maioria dos seus Estados-membros.

Segundo, ainda que o apoio árabe-africano ao egípcio tivesse uma parcela da solidez e da amplitude que Amorim lhe atribui, os eventuais ganhos para o Brasil seriam insignificantes, quando não eclipsados pelos prejuízos decorrentes da sua decisão. Pois, e esse é o terceiro ponto negativo da adesão brasileira a Hosny, a sua reputação, como se diz, o precede no palco global. Ele fez por merecê-la ao declarar certa vez, ao falar ao Parlamento de seu país, que mandaria queimar em praça pública os livros em hebraico que encontrasse nas bibliotecas egípcias. Para Amorim, foram "pouco felizes" as palavras de Hosny. "Tenho certeza de que ele pautará a sua gestão à frente da Unesco por um diálogo de civilizações", devaneia o chanceler. É simplesmente escandalosa a incompatibilidade entre o personagem e o cargo que ambiciona numa agência multilateral voltada para a aproximação cultural entre os povos.

Na sexta-feira, pouco antes de seguir viagem para a Arábia Saudita, China e Turquia, o presidente Lula considerou "pouco patriótica" a criação da CPI da Petrobrás. Será o quê, então, o Brasil se identificar aos olhos do mundo com uma figura que prega a queima de livros? A pergunta se justificaria ainda que um brasileiro não fosse um candidato natural à sucessão em um órgão com a visibilidade da Unesco. Trata-se, como observou o ex-chanceler Celso Lafer, em artigo publicado no Estado de sábado, de "um erro diplomático, pois compromete a consistência das posições brasileiras em prol do multilateralismo". Mas o fato é que o governo Lula faz qualquer negócio por sua ideia fixa na frente externa - conseguir um lugar permanente em um reformado Conselho de Segurança da ONU. Em busca dessa quimera, o Itamaraty se desdobra em mesuras diante dos mais impalatáveis interlocutores. É uma contraproducente perda de tempo.

Em Riad, Lula disse que a ampliação desse colegiado dos sócios originais do clube atômico só depende de Washington. "Basta os Estados Unidos dizerem que querem", fantasiou. Para ele, a França e o Reino Unido, outros membros permanentes do organismo, apoiam a reforma. Lula confunde desejos e realidades. Paris e Londres fazem expressão corporal em favor da mudança, mas - assim como a Rússia e a China - não têm a mais remota intenção de ver reduzido o seu poder político no centro de decisões por excelência das Nações Unidas, compartilhando-o com outros governos. Se assim não fosse, não se falaria ritualisticamente do assunto há duas décadas. Só o presidente e o seu chanceler parecem não enxergar essa obviedade.