Título: A mão do gato
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2009, Nacional, p. A6

Dora Kramer, dora.kramer@grupoestado.com.br

Nada mais impreciso do que considerar o enterro do voto em lista fechada e do financiamento público de campanhas eleitorais um recuo do Congresso no tocante à reforma política.

Em relação a esse assunto, o Poder Legislativo continua onde sempre esteve: de abraços dados com o atraso, conservador até a medula, mantenedor de um sistema obviamente falido. Não que as referidas propostas, se aprovadas, significassem uma reformulação do sistema eleitoral. Nem de longe.

Isoladas, sem a sustentação em outras mudanças de fato mais modernas, como o voto facultativo e por distritos, tais alterações poderiam produzir deformações. Semelhantes, por exemplo, às ocorridas com a adoção de medidas provisórias, um instrumento do parlamentarismo, no regime presidencialista.

Não é essa a questão. O problema, como sempre, reside na desfaçatez de procedimentos. Há 15 dias, o presidente da Câmara, Michel Temer, anunciou que finalmente o Parlamento daria início ao debate da reforma política.

A base da discussão seria um anteprojeto preparado pelo Ministério da Justiça, do qual foram destacados dois pontos tidos como mais urgentes: o voto em lista fechada e o financiamento público.

Celebrou-se, tanto no Legislativo como no Executivo, o avanço contido nessas medidas, alegadamente destinadas a começar a corrigir as distorções do sistema.

Desconfiou-se, na ocasião, de que o lançamento do tema no ar, assim sem nenhuma convocação do eleitorado ao debate, serviria a outros objetivos: apresentar uma agenda positiva em substituição à pauta dos escândalos de privilégios no Congresso, abrir espaço para a burla da regra da fidelidade partidária, cuja interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal veda a troca de partido sem justa causa e, quem sabe, incluir pelo instituto da desfaçatez algum artifício heterodoxo.

Não deu outra. Alegando "divergências" na base governista, a pauta inicial foi arquivada e substituída por uma agenda que revela um pedaço da verdadeira face da reforma pretendida. Muita coisa ainda está obscura, mas o pouco já mostrado confirma as piores suspeitas.

A história de lista fechada e financiamento público não passa de pura conversa fiada. O plano mesmo é criar um ambiente para dar vazão a toda sorte de arranjos eleitorais necessários à conveniência de suas excelências no ano que vem.

Embromação com nome, sobrenome e certidão passada em cartório do céu. Para enfeitar o embrulho, decidiu-se pôr as propostas em votação na semana que vem "mesmo sem acordo".

Isso quer dizer uma simulação de tentativa. Uma vez rejeitadas as propostas pela maioria, vai-se ao que de fato interessa. Por ora, à sugestão do deputado Eduardo Cunha de redução do prazo de filiação para candidatos à eleição de 2010.

Pela regra atual, teriam de decidir seus destinos até setembro próximo. Pela alteração apresentada, ganham tempo até abril e, de quebra, imaginam passar a perna na Justiça Eleitoral.

Reduzido o prazo entre a filiação e a eleição, dificilmente os tribunais conseguirão julgar casos de trocas indevidas de legendas antes do pleito. Consumados os fatos eleitorais, se houver algum problema depois basta alegar que o Judiciário extrapola seus limites e pretende se substituir à vontade do eleitor.

Convenhamos: o que isso tem a ver com reforma política? Qual a relação de causa e efeito entre as deformações existentes e as correções necessárias? Onde fica o eleitor?

No lugar de sempre: do lado de fora de um arranjo meramente eleitoral, de objetivos ainda não completamente esclarecidos, num clima de absoluta maluquice legislativa em que cada um inventa a jabuticaba que quer. Seja apresentada na forma de prorrogação do mandato de Lula, de emenda permitindo mais de uma reeleição, de plebiscito, de referendo, do que for.

E o que será? Ninguém sabe. De evidente há apenas a nítida disposição de embaralhar as cartas já postas na mesa e a sombra da mão do gato pronta para providenciar a redistribuição como melhor convier à ocasião.