Título: Centenário da descoberta da doença de Chagas
Autor: Mady, Charles
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2009, Espaço Aberto, p. A2

Neste ano de 2009 comemoramos os cem anos da descoberta da doença de Chagas. Trata-se de fato extremamente importante do ponto de vista médico e científico, mas que, infelizmente, não recebeu nem recebe a importância devida e merecida.

Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, ou simplesmente Carlos Chagas, ilustre brasileiro, nasceu em 1879. Formou-se pela então Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1903, dedicando-se posteriormente ao estudo de doenças infecciosas e parasitárias. Oswaldo Cruz, outro ícone da medicina de nosso país e seu mentor no Instituto de Manguinhos, enviou seu discípulo a um ramal da Estrada de Ferro Central do Brasil, na cidade de Lassance, no norte de Minas Gerais, região do Rio das Velhas, para investigar um surto de malária que lá estava ocorrendo. Instalou consultório, laboratório e dormitório num vagão ferroviário do ramal que estava sendo construído, de forma precária e com poucos recursos técnicos à disposição. Ao examinar uma menina de 2 anos de idade chamada Berenice, entre tantos outros pacientes, notou, com a acurácia dos grandes propedeutas, quadro clínico diverso da enfermidade que motivara sua viagem. Colheu amostra de sangue da criança e detectou o parasito causador desse mal, dando-lhe o nome de Trypanosoma cruzi, em homenagem a seu mestre, e de cepa Berenice à amostra colhida dessa menina. A paciente foi reencontrada em 1961, sendo examinada e estudada e, como fato científico importante, ainda era portadora da mesma cepa do parasito. Faleceu em 1981, mas não dessa doença. Carlos Chagas fez o relato de sua descoberta na literatura médica em 1909 e a moléstia recebeu seu nome por indicação de seus pares, em sinal de total reconhecimento. Na ocasião, foi enaltecido por Oswaldo Cruz como a maior das glórias de Manguinhos. Continuou seus estudos em seres humanos e animais silvestres e de laboratório, divulgando suas observações em inúmeras revistas científicas. Foi indicado ao Prêmio Nobel, que injustamente não lhe foi atribuído, por motivos que permanecem obscuros até hoje.

Acredita-se que essa doença exista no continente americano desde os tempos em que o ser humano passou a habitá-lo. Múmias bem conservadas de 9 mil anos de idade, descobertas no Deserto de Atacama, tinham fragmentos do parasito em seus tecidos. Charles Darwin, em seus relatos, comenta ter sido picado por um inseto hematófago que, pela impressionante clareza de sua descrição, deve ter sido o agente transmissor da doença de Chagas. Morreu na Inglaterra de insuficiência cardíaca, provavelmente causada por esse mal.

Qual é a situação dessa doença nos dias atuais? Por incrível que possa parecer, não temos medicamentos seguros e eficientes para tratar a infecção humana. Em contraste, temos drogas e equipamentos altamente sofisticados e caros para tratar as consequências mais graves da doença, como a insuficiência cardíaca. Sabemos transplantar corações de pacientes infectados, mas não sabemos tratar a causa desse mal.

Programas de erradicação do inseto transmissor foram aplicados em algumas áreas endêmicas, com sucesso. Mesmo assim, a maioria das regiões acometidas não recebe das autoridades responsáveis o tratamento devido. Doenças menos prevalentes, mas importantes por visões políticas e de mídia, recebem atenção bem maior do que essa. Carlos Chagas, em 1911, dizia que medidas sanitárias simples, modificando as condições de habitações, dariam grandes resultados. Em sua visão humanista e de cientista idealista, também dizia que certamente não nos faltariam energia e vontade política para resolver o problema. Infelizmente, como acontece com a maioria daqueles que produzem para a evolução do bem-estar social, as suas previsões não se concretizaram.

Em 1944, Portinari retratou em sua tela Lavadeiras uma criança apresentando os sinais típicos da doença. Hoje, na América Latina, 25% da população, ou seja, 90 milhões de pessoas, estão expostas ao contágio. Acreditamos que haja 16 milhões de pessoas infectadas, com 6 mil mortes por ano, 91% das quais com comprometimento cardíaco. Isso tudo após Carlos Chagas ter dado o alerta em 1911. Por acometer preferencialmente populações de regiões pobres, socialmente excluídas, estas recebem menos atenção dos órgãos responsáveis, representando um mercado de pouca expressão e levando ao desinteresse político por essa doença. Nas últimas décadas, resultado de um grande esforço da comunidade científica latino-americana, houve redução da transmissão em extensas áreas trabalhadas, demonstrando objetivamente a possibilidade de erradicação da doença. Deve-se salientar que essas iniciativas não foram fruto de políticas de Estado, pois as vontades sociais, políticas e mercadológicas para a implementação do controle da doença são mínimas. Para agravar a situação, com a febre da globalização, estamos "exportando" a doença para a América do Norte, a Europa, o Japão e a Austrália, com a emigração de membros de nossa população. Essas regiões não faziam testes de rotina em seus hospitais e bancos de sangue para detecção da doença, vivendo hoje todas as consequências desse fato. Carlos Chagas dizia, do alto de sua sabedoria, que não há doenças exclusivas dos trópicos. Mais uma lição desse mestre que deveríamos já ter aprendido.

O que faz esse eminente cientista brasileiro ter um lugar por poucos ocupado é o fato de, além de ter descrito a doença que leva o seu nome, com todas as implicações clínicas, ter identificado o agente transmissor e também o organismo causador desse mal. Essa tríplice descoberta faz do autor uma presença quase única na história das ciências médicas no Brasil e no mundo. Carlos Chagas deve, portanto, ser reverenciado como um dos maiores cientistas que nosso país produziu em toda a sua História.

Charles Mady, professor associado da Faculdade de Medicina da USP, é diretor da Unidade de Miocardiopatias do InCor. E-mail: charles.mady@incor.usp.br